Leninismo contemporâneo e processos revolucionários

Parte 2
“Se a atitude de Mao diante do Partido era pelo menos heterodoxa, sua análise da revolução chinesa era simples, genial e marcada por um espírito rigorosamente leninista” [1].
Por A.Sérgio Barroso*

Não é à toa que teóricos chineses consideram o pensamento de Mao Zedong uma etapa nacional do marxismo-leninismo. E Ho Chi Min escreveu indelevelmente em “O caminho revolucionário”: “Existem muitas doutrinas e teorias contemporâneas, mas a mais autêntica, segura e revolucionária é o leninismo”. [2]

Metaforicamente, Lênin seria Prometeu desacorrentado dos escarpados rochedos de Cítia – mas doutrinariamente preso eternamente a Marx-Engels.

Intérpretes destacados e modernos do leninismo sublinham o brilho de sua luz própria relativamente a Marx. Por suposto, o marxismo-leninismo é um ideário sistêmico historicamente fundado em diferenças na unidade; contiguidades e rupturas. De outra parte, os princípios ali contidos são modificados pelo próprio caráter dialético de ciência social materialista: regras, princípios e leis são móveis – carimbe-se em letras garrafais.

Seus elementos centrais são convergentes a quatro dimensões teóricas estruturais: a) contribuições ao desenvolvimento do materialismo dialético de Marx-Engels; b) sistematização de novas leis de movimento do regime do capital (e teoria do imperialismo); c) aportes a novas sínteses da teoria de partido, notadamente a desafios organizativos, da tática e da estratégia revolucionárias; d) uma nova teoria da transição ao socialismo.

Sigamos sinuosamente tal roteiro, focando as preocupações sistemáticas de Lênin em: 1) desvencilhar-se do escolasticismo de todo o tipo, limpando “estrebarias” teóricas confusionistas ao movimento revolucionário; 2) demolir os entraves da singular “via nacional” da revolução na Rússia, vista com elo da cadeia global capitalista.

Os célebres estudos de Lênin sobre “A Ciência da Lógica”, de Hegel, entre setembro e dezembro de 1914, foram ressaltados (1935) por H. Lefebvre e N. Gutterman. Afirmam: não sendo um filósofo habitual, Lênin nos “Cadernos a da Dialética de Hegel” prolonga “vigorosamente” o pensamento dos fundadores do socialismo científico. Note-se: a teoria dialética hegeliana da contradição e da superação penetrando a convulsão da Primeira Guerra Mundial. [3] Certamente Marx e Engels não vivenciaram nada parecido com a catástrofe belicista iniciada em 1914.

O filósofo G. Lukácks, num Posfácio de 1967 acerca da unidade do pensamento do revolucionário russo, [4] retoma uma ideia crucial para o marxista Lênin: a análise concreta da situação concreta não constitui nenhuma oposição “à teoria pura”, mas ao contrário, o ponto culminante da autêntica teoria, o ponto em que a teoria “é verdadeiramente realizada”, transformando-se por esta razão “em práxis”.

Nessa vertente, é exemplar a observação de L. Gruppi acerca da excepcional virada estratégica “tão rapidamente realizada por Lênin”, imediatamente após a Revolução de Fevereiro: ela foi motivada não por um raciocínio sobre o desenvolvimento da economia, que não sofrera desde 1905 alteração substancial, apesar da expansão do capitalismo, e sim por avaliação sobre a situação da correlação de forças políticas. [5] É, aliás, de Lênin, no famoso “Discurso em favor da resolução sobre a guerra”, a frase: “Uma revolução não se faz por encomenda, ela se desenvolve”. [6]
Nesse curso – o processo revolucionário russo -, o pensamento sofisticado de Lênin é minunciosamente analisado por Lucien Sève [7], destacado filósofo francês e ex-dirigente do PCF. Ao demolir os argumentos da anticomunista Hélène Carrère (Lénine, Fayard, 1998), Sève demonstra – para “decepção” de muitos – que a possibilidade de uma “revolução pacífica tem um lugar central na visão estratégica de Lênin pelo menos desde Abril de 1917”. Sim: é verdadeiro que, no “Projeto de resolução sobra a guerra”, Lênin Propõe que a Conferencia de Petrogrado (27 de Abril a 5 de Maio) reconheça que:

“(…) em nenhum lugar do mundo se pode efetuar tão fácil e tão pacificamente a passagem de todo o poder de Estado à verdadeira maioria do povo, quer dizer, dos operários e dos camponeses pobres”. [8] Lênin se referia a experiência “única” da conformação dos Sovietes como força e expressão do poder da ditadura democrática revolucionária dos operários, soldados e camponeses, na Rússia, ao lado do governo da burguesia.
Voltando a Sève, igualmente este recorda o ápice da contrarrevolução de Kornílov, em Julho, a fome e a guerra no governo Kerenski. Para Lênin, antes de julho era possível a transferência pacífica do poder para os sovietes: “Mas já não é esse o caso, o período pacífico da revolução terminou. Chegou o período da ruptura e da explosão” (cf. Séve, idem, p.7).

Sabemos que Lênin, então às portas da insurreição, elabora a primeira grande reorientação da teoria marxista sobre “O Estado e a revolução” (agosto/setembro 1917). Mais uma vez utiliza o método dele – e de Marx – da vasta investigação da pesquisa, para só depois expor, buscando responder a exata medida que a situação politica reclamava.

NOTAS;

[1] Ver: “Mao e a revolução chinesa”, de Martin Bernal, in: “História do Marxismo – O marxismo na época da Terceira Internacional: o novo capitalismo, o imperialismo, o terceiro mundo”, Hobsbawm, E. (org.), v. 8, Paz e Terra, 2007, p.393, 2ª edição.

[2] Em: “Ho Chi Min – vida y obra”, Vietnam, Editorial The Gioi, 2007, p. 50.

[3] Ver: “Cadernos sobre a dialética de Hegel”, V. Lenin. Introdução de Henri Lefebvre e Norbert Gutterman, Editora UFRJ, 2011, p. 8.

[4] Ver: “Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento”, György Luckács. Posfácio, Boitempo, 2012, p. 106.

[5] Ver: “O pensamento de Lênin”, L. Gruppi, Graal, 1979, p.157.

[6] Ver: “Septima Conferencia *De Abril) de toda a Russia del POSDR (b) (7-12 de Mayo 1917)” de V. Lenin, Obras Completas,, Tomo XXV, p. 221.

[7] Ver: “Regresso crítico a Lénine ou antileninismo primário?”, de L. Sève, in: Vértice, Lisboa, Abril-Maio de 2000, pp. 5-21. Atenção: todas as passagens de Lênin citadas neste artigo pelo autor foram por mim conferidas nas Obras Ecolhidas em 6 Tomos (1985), e Obras Escolhidas em 3 Tomos, Lisboa, Avante! (1978); Obras Completas Edições Akal, Madrid (1974, 1977, 1978)

[8] Em: “Conferencia del POSDR(b) da la ciudad de Petrogrado”, V. Lenin, Obras Completas, Tomo XXV, Akal, p. 93.

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