Lembrar a ditadura no Brasil: para quê?
Entrevista com Dr. Táki Cordás: memórias literárias e históricas da ditadura, destacando a trajetória de um escritor influenciado pelos horrores do regime militar no Brasil.
Publicado 14/06/2024 10:13
Fui entrevistado por Dr. Táki Cordás sobre a ditadura no Brasil. Ele tem feito entrevistas por vídeo com pessoas do nível de Flávio Dino e Alcir Pécora. Mas desta vez, na terça-feira 10 de junho, o Dr. Táki Cordás teve a generosidade de me incluir em tão seleto grupo. Destaco alguns pontos da minha fala a seguir.
No começo. ele me perguntou como cheguei às letras. Respondi que a literatura me segue ou a sigo desde que li pela primeira vez o soneto “Só” de Cruz e Souza. Eu devia ter uns 14 anos de idade. E me arrebataram para sempre os versos:
“Ah! como eu sinto compungidamente,
Por entre tanto horror indiferente,
Um frio sepulcral de desamparo!”.
Essa poesia me atingiu profundamente. Eu vi que nesse poema Cruz e Souza falava dele mesmo, e para todos e para mim em particular.
Nesta altura, Táki Cordás me pediu para falar sobre o livro “Soledad no Recife”, que despertou em muitas pessoas o interesse pelo que escrevo. E recuperei os fatos, antes do livro.
Soledad Barrett, de militância em 5 países, inclusive no Uruguai quando muito jovm teve as coxas cortadas a navalha, para cicatrizá-las com suásticas, por um comando nazista. Pois bem, depois de Cuba, Soledad vem ao Recife com o Cabo Anselmo, e em Olinda, o “cabo” abre uma butique onde põe o nome-armadilha de Mafalda. Isso em plena ditadura Médici, em 1972. E quando Soledad é morta em janeiro de 1973, eu estava indo para o trabalho na Celpe. Eu retomo isso no mais recente romance “A mais longa duração da juventude”. Nesse romance, a personagem/pessoa de Soledad volta.Então, na subida da ponte da Boa Vista, a famosa “ponte de ferro”, eu vejo as mancehetes numa banca de revistas que ficava ao pé da ponte: “6 Terroristas mortos em Paulisa”. Entre os seis, estava Jarbas Pereira, que eu conhecia desde a época em que havíamos bebido juntos no Pátio de São Pedro, pelo carnaval de 72. E me disse, entre espanto e revolta: “que negócio é esse?! Jarbas não é terrorista!”. O choque foi tão grande, que eu fui até a balaustrada da ponte e me pus a vomitar. Eu não consegui conter o vômito. E assim eu vou para mais um expediente.
Chego ao trabalho em estado de choque. Não só porque havia perdido um amigo, como também por este pensamento íntimo: “Estão fechando o cerco. Logo chega a minha vez”. Então chega lá um reacionário, um safado lá, que desconfiava da minha posição política, abre o jornal e anuncia:
– Pegaram uns terroristas hoje. Vocês viram?
E eu estou lá batendo à máquina, que não havia computador, batendo à máquina guias de material elétrico. Em silêncio, fingindo nada ouvir. Então ele vem e praticamente empurra o jornal na minha cara:
– E aí, você viu?
Eu respondi:
– É…
E ele:
– A puta era até bonitinha.
Eu baixei os olhos. Mas ele voltou:
– Você está vendo? Eram terroristas ou não eram?
O máximo que eu consegui falar foi:
– Às vezes os jornais exageram….
Então ele se virou para os demais colegas e me apontou:
– Mas eles eram terroristas! Eram ou não eram?
Aí eu baixei a cabeça e corri para o banheiro. Pra chorar. Eu só me lembrava do Novo Testamento, quando Pedro renegou Cristo três vezes.
Fiquei com esse trauma até começar a escrever “Soledad no Recife”. Mas eu ainda não sabia como. As pessoas precisam saber que o fracasso é uma boa escola, quando se reflete sobre ele. Eu não conseguia escrever o livro, porque sentia que estava soando falso, a narração não batia aos olhos como verdade. Eu ficava horas sentado no quarto, isolado todas as manhãs, e nada. Até o dia em que eu tive uma iluminação: “Eu estou levando este livro na terceira pessoa do singular. Este é o erro. O enamorado de Soledad sou eu! Sou eu que devo contar o meu amor platônico por ela”. Então o livro fluiu. E de tal maneira, que mais de um pessoa me pergunta até hoje se eu fui mesmo namorado de Soledad. E quando nego, não acreditam, pensam que estou mentindo, escondendo o jogo.E retomam:
– Você não namorou Soledad. Mas como foi que pintou o seu amor por ela? Qual foi o truque?
Eu respondo sempre:
– Não tem truque. Eu não pude namorar Soledad, mas a minha paixão por ela veio da paixão por inúmeras companheiras, bravas, que eu conheci na militância, e não pude tê-las, porque já possuíam seus companheiros. Então essa paixão que possuía por inúmeras companheiras foi encarnada em Soledad.
É isso que dá a razão da verdade. Porque para escrever, ou você fala a verdade, fala com verdade, ou então, como diria Maria da Conceição Tavares, vá ser engenheiro de obras. (Com todo respeito aos dignos profissionais, mas que pertencem a um reino de concreto diferente).
Em outro ponto da entrevista, Táki Cordás pergunta:
– Soledad estava grávida?
Respondo:
– Sim. Ela estava grávida, e o safado do Anselmo, seu companheiro e marido, negou até o fim que ela estivesse grávida. Com isso, ele procurava diminuir o assassinato e a infâmia dele. Mas existem 3 depoimentos que atestam a gravidez de Soledad. Primeiro, o depoimento imortal da advogada Mércia Albuquerque. Doutora Mércia viu o cadáver de Soledad com o feto nos pés num balde improvisado. Esse depoimento de Mércia está gravado em letras de fogo. No segundo depoimento, a mãe de Jarbas era enfermeira e conhecia Soledad, porque Anselmo visitava a casa dela com a companheira. E a mãe de Jarbas viu o cadáver de Soledad no necrotério, com o feto num balde.Em terceiro, tem o depoimento de um militante, Marx (nome que o pai comunista lhe deu) que viu Soledad na casa da sua família fazendo sapatinhos de croché pro bebezinho que ia nascer. Esse depoimento está narrado em meu romance “A mais longa duração da juventude”. Então não tem como negar. Essas pessoas não são mentirosas! Mércia Albuquerque tem uma frase pungente, quando ela diz: ”Eu não sabia se o feto nasceu antes ou depois daquele horror”.
Então chegou a hora de falar sobre “A mais longa duração da juventude”, que foi traduzido para o inglês e publicado nos Estados Unidos. Mas então faltavam só 5 minutos para encerrar a entrevista de 1 hora. Pude dizer:
– “A mais longa duração da juventude” é o meu romance mais ambicioso. É um romance de formação, dos militantes contra a ditadura no Recife. E o interessante é o seguinte: aquilo que Goethe dizia muito bem, “se queres atingir os corações, fala do que vem do teu coração”. José Carlos Ruy, que escreveu um prefácio belíssimo para o romance, dizia que viu os jovens de São Bernardo, em São Paulo, vendo a juventude no meu romance. E assim, penso que o romance fez aquilo que Tolstói uma vez expressou: se queres ser universal, fala da tua aldeia.
Mas aí a entrevista estava no fim, soou o tempo de 1 hora, e deixamos pra conversar sobre o meu mais recente romance em nosso próximo encontro.
No YouTube, a entrevista ficou gravada neste link.