Khadafi e a intoxicação ideológica

No início de 2003 notamos no artigo “A doutrina Bush e a rapina do petróleo”. (publicado na revista Debate Sindical) que, em vez de cumprir até o fim o anunciado acerto de contas com os acusados de ter feito os habitantes de Nova Iorque sofrer um apocalipse semelhante às chuvas de mísseis despejadas por seu governo na periferia pobre da ordem liberal-imperialista, o criminoso de guerra Bush filho estava concentrando seu furor genocida contra o Iraque, cujo governo sabidamente não mantinha nenhuma espécie de vínculo com os presumidos autores dos atentados de 2001. Havia certamente um componente doentio na obstinação anti-iraquiana do então inquilino da Casa Branca, evidente na fixidez alvar, típica dos tresloucados, que paira em sua expressão facial. Mas não convém superestimar o aspecto psicopatológico de seu pensamento. Mesmo porque em dezembro de 1998, Clinton, seu predecessor, que não era louco, mandou bombardear Bagdá com violência sem precedentes desde 1991. Precisava distrair a opinião pública estadunidense do processo de "impeachment" que então lhe era movido por assuntos sexuais, mas, evidentemente, se usou a pele dos iraquianos para fugir da sanha dos alcoviteiros mediáticos, foi porque o aniquilamento de Saddam Hussein se inscrevia perfeitamente na lógica do belicismo imperialista.
 

O adágio “malandro não estrila” vale para a pequena criminalidade, mas não para o pútrido império dos dólares e dos mísseis. Basta ver a esplêndida arrogância do editorialista do Washington Post, replicando ao então secretário-geral da ONU, Kofi Annan (que ousara expressar tímidas reservas em relação aos bombardeios anglo-estadunidenses): “Os Estados Unidos e a Grã Bretanha são mais fiéis aos objetivos textuais das Nações Unidas do que as próprias Nações Unidas”. Na verdade os dois velhos sócios estavam tentando (não sem certo êxito) tornar a ONU uma casa de tolerância conivente com a pilhagem do planeta e o estupro de Estados e governos que não se inclinam ao “diktat” do cartel imperialista europeu/estadunidense.

 

Foi evidentemente o desmantelamento do bloco soviético, provocando a ruptura, em favor do bloco capitalista, do equilíbrio estratégico US/URSS, que permitiu ao cartel imperialista agrupado na Otan “esquecer” a missão “defensiva” em nome da qual ela tinha sido criada no início da guerra fria, para assumir a função de exército colonial, agredindo com bestial violência, sob os pretextos mais sórdidos e hipócritas, um número sempre crescente de países periféricos. Na própria Europa, que não tinha sido teatro de conflagração bélica desde maio de 1945, quando o glorioso Exército Vermelho entrou em Berlim, os abutres de Washington, Londres, Paris e adjacências destruíram a Iugoslávia, naquela que Fidel Castro qualificou de “la guerra la más cobarde de todos los tiempos”.

 

Notamos também, a propósito da alegação mentirosa de que o governo iraquiano havia acumulado armas de destruição em massa para atacar o "Ocidente”, que até então as únicas armas encontradas na região eram os mísseis lançados pelos matadores profissionais do Pentágono. Foi muito importante para que essa mentira prosperasse a contribuição da grande tropa dos sabujos mediáticos. A intoxicação mental é uma indústria cultural altamente eficiente: satanizou Saddam Hussein a tal ponto que mesmo o jornal da Unicamp, universidade considerada a justo título uma das melhores do país, sucumbiu à histeria: seu Caderno Especial I (1), dezembro de 2001 consagrado ao “Bioterrorismo” anuncia, logo nas primeiras linhas do artigo bombasticamente intitulado “Ébola, varíola, antraz: o horror invisível” que um único membro do Taleban contaminado por varíola, andando no metrô de Nova York, pode causar a morte de centenas de milhares de pessoas em poucas semanas […]. “Eles são bem capazes de contaminar algum suicida com esse intuito”, “alertou” uma infectologista de plantão. “A ameaça de uso de armas biológicas tornou-se mais real depois dos recentes atentados com correspondências contendo antraz nos EUA. Do possível arsenal a ser usado por terroristas fazem parte, além da varíola e do Bacillus anthracis, o vírus Ébola e a tularemia, entre outros”. Na ocasião, recomendamos a essa pesquisadora das infecções do corpo que se vacinasse contra as da mente. Mais tolas ainda foram as mentiras do periodista que organizou o abominável Caderno Especial. Papagaiando os celerados da Casa Branca e do Pentágono, ele escreveu que “pelo menos 12 países possuem comprovadamente armas biológicas, entre eles o Iraque, que sintetizou o Bacillus anthracis”. O escriba solerte só não contou de onde tirou essa “informação”.

 

São muitas as semelhanças entre o Iraque de 2003 e a Líbia de 2011. Ambos eram governados, até o estupro neocolonial, por um regime laico, oriundo da luta anti-imperialista das nações árabes, ambos tinham forte produção de petróleo de muito boa qualidade e mantinham, dentro dos limites das fortes pressões impostas pelo imperialismo, uma política externa independente. Ambos, enfim enfrentavam uma oposição heterogênea, composta de provocadores diretamente a soldo dos “serviços especiais” (Cia e sucursais europeias), de liberais de direita pro-imperialistas e de fundamentalistas islâmicos de extrema-direita. (No Iraque entretanto acrescentava-se o movimento autonomista curdo).

 

Muito semelhante também foi o uso da intoxicação mental contra os dois governos. Já me referi a um energúmeno de “extrema-esquerda” que num debate sobre a Líbia ao qual compareci declarou que Khadafi “massacrou trinta mil líbios”. Perguntei-lhe de onde tinha tirado esse número. Não respondeu porque sua estultice não ia a ponto de cobrir-se de ridículo admitindo que ouvira isso na Rede Globo ou “fonte” similar. Mas enquanto os “baba-ovo” papagaiavam o que liam e ouviam na mediática do capital, os três safados da cúpula da Otan (Camarão, Sarkozy e Berlusconi, este aliás menos aguerrido que os dois parceiros), empenhados na tentativa de recuperar, sob novos rótulos jurídicos, seus velhos impérios coloniais, continuavam intensificando os bombardeios ditos humanitários: entre junho e o final de agosto, quando os sicários da Otan e outros bandoleiros ocuparam Trípoli, esta capital foi bárbara e mortiferamente atacada.

 

Khadafi, dissemos mais de uma vez, tem seguramente muitos defeitos, mas sobra-lhe a coragem física e moral de que carecem os agentes do colonialismo que o caluniam. Entre seus detratores locais, a Folha conseguiu, “comme d’habitude”, ser a mais tartufa. É sabido que o policiamento ideológico em sua redação é implacável: é proibido escrever Fidel Castro, tem de ser, obrigatoriamente, o ditador Fidel Castro. Não surpreende pois, que ela tenha aplicado a Khadafi o mesmo epíteto pejorativo. Mesmo porque não foi só ela, mas praticamente toda a mediática do capital, embalada pelo pensamento único made in US, que participou do coro de uivos contra os patriotas líbios. Mas a Folha fez questão de ficar na linha de frente do zelo pró-Otan. Em 30 de agosto, com Trípoli nas mãos dos saqueadores e outros delinquentes, o diário da “famiglia” Frias conseguiu em poucas linhas de uma chamada da primeira página escrever cinco vezes “o ditador Khadafi”. Tanto zelo terminológico seria menos ridículo se o jornal não escrevesse sempre “o presidente Costa e Silva”, “o presidente Médici” etc. Segundo os Frias e seus escribas, esses protetores da tortura não foram ditadores; no pior dos casos, teriam sido, como diriam, “ditabrandos”. Talvez por isso a Folha tenha emprestado ao Doi-Codi, para camuflagem, os furgões que distribuíam o jornal na madrugada, colaborando assim com os degenerados que prendiam e torturavam nossos companheiros, muitas vezes até a morte. Afinal, era imperativo defender por todos os métodos Deus, a Família, a Propriedade e até a “dimócraci”, numa palavra, o “Ocidente”. É o que Marx chamava de “suja rabiscadura jornalística”.

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