Julho das Pretas e a série “Coisa Mais Linda”
A série Coisa Mais Linda, da Netflix, conta a história de mulheres enfrentando o cotidiano do patriarcado. As situações nas quais estão inseridas possuem paralelo no que passam as mulheres diariamente no Brasil e no mundo e nos fazem lembrar a luta de grandes mulheres da história. Pode conter spoilers da série
Publicado 12/07/2021 18:37 | Editado 12/07/2021 20:01
“Julho das Pretas” – 31 dias em homenagem às mulheres negras e suas lutas. No Brasil a data 25/07 homenageia Tereza de Benguela, liderança política do Quilombo de Quariterê (Mato Grosso, fronteira com Bolívia) no século 18.
Tereza de Benguela é, como tantas heroínas negras, esquecida na história oficial. No entanto, o movimento negro, fundamentalmente as organizações de mulheres negras, busca resgatar a trajetória de resistência de Tereza de Benguela, que assumiu o comando do Quariterê após a morte do companheiro. Sob a liderança de Tereza, o maior quilombo do Mato Grosso resistiu à escravidão por duas décadas. Segundo a biblioteca da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, o território do Quariterê era de difícil acesso, o que possibilitou a resistência do povo negro e indígena. Regido por um tipo de parlamento da comunidade, ali se cultivava algodão, milho, feijão, mandioca, banana, com venda dos excedentes. Tereza foi capturada por bandeirantes e morreu se suicidando ou assassinada por seus raptores (não se sabe), mas o ódio colonialista expôs sua cabeça no centro do Quilombo.
“Coisa Mais Linda”, série em duas temporadas (13 episódios) da Netflix, tem a ver com essa história porque também conta a trajetória de mulheres negras lutadoras no Rio dos anos 50-60. Série cativante e instigadora, dá vontade de seguir os passos das personagens interpretadas com brilhantismo pelas atrizes Maria Casadevall, Pathy de Jesus, Fernanda Vasconcellos e Mel Lisboa. A direção é de Júlia Rezende, Caíto Ortiz e Hugo Prata.
Como na série que ora apresentamos, o racismo que ali se apresenta torna-se mais evidente também no contexto da pandemia da Covid-19, quando a população negra, pobre e periférica tem sofrido altas taxas de adoecimento e maior percentual de mortalidade pela doença, agravado em forma de violência psicológica de forma exponencial, com a política racista e socialmente excludente do governo federal genocida.
O cenário de “Coisa mais linda” é o Rio de Janeiro, em suas belíssimas paisagens, embaladas pelo novo gênero musical então surgido, a bossa nova. As personagens centrais são quatro mulheres, todas com personalidades firmes e plenas de sonhos, com trajetórias e anseios diversos. Mas com uma identificação em comum -sofrerem com agressões machistas, preconceitos, violências, porém sempre buscando dignos espaços de trabalho, de amor e de liberdade.
Maria Casadevall é Maria Luísa (Malu), filha de família rica de São Paulo, casada e com um filho pequeno, o qual aparece em alguns momentos com questionamentos e esperanças próprios de um menino de 6 anos. Ele conversa com a mãe pelo telefone, justamente quando ela viaja a São Paulo para encontrar o marido e dar consequência ao restaurante que abririam no Rio. Ao chegar, descobre que seu marido tinha outra mulher e ainda a deixou cheia de dívidas. Determinada, resolve ficar e abrir o Bar Restaurante, que é batizado pelo nome da série (“Coisa mais linda”, alusão ao verso de “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinicius). Antes de se decidir, conversa sobre nomes possíveis para o Bar com sua amiga Adélia (Pathy De Jesus).
Mulher negra moradora do morro, Adélia tem uma filha pequena, inquieta e questionadora. Adélia vive as agruras e contradições de quem habita a periferia, trabalha como empregada doméstica e tem que aturar o tratamento racista cotidiano da patroa. Uma cena mostra o impedimento de Adélia em utilizar o elevador social, já que o de serviço está estragado, obrigando-a a escalar nove andares sob o peso de compras do mercado. Malu e Adélia se tornam grandes amigas, uma ajudando a outra, e Malu se defronta com o racismo em algumas passagens.
A série consegue expressar o quanto o racismo existe estruturalmente em nossa sociedade, ancorado na herança do longo período da escravatura e ainda escorado em obsoleta e furada teoria da inferioridade de raça. As mulheres, com seus corpos objetificados, trazem marcas históricas de opressão e sexualização. Na escala de desigualdades entre as mulheres, as negras são as que mais sofrem com as piores condições, estabelecidas pelo patriarcado e pelo machismo, seja no acesso a empregos, onde dificilmente atingem altos cargos e, quando pobres, ainda são maioria nos sub-empregos precarizados. Também são minoria na política e passam por diversos tipos de violências, diferenciadas das mulheres brancas, apresentando peculiaridades que precisam ser reconhecidas no conjunto da luta, mas também enfrentadas na sua especificidade e diversidade, para elevar o patamar de igualdade. São as mulheres negras que mais padecem com a ausência de políticas públicas, com a violência obstétrica e violação de direitos sexuais e reprodutivos, que tem sua imagem explorada pelos meios de comunicação, de forma hiper-erotizada, sofrendo preconceitos, além de serem as que mais defrontam a violência familiar e doméstica. Assim, a “opressão racial multiplica a gravidade da opressão de gênero” (QG Feminista).
Lígia (Fernanda Vasconcellos), bela mulher, de voz e presença marcantes no palco, tem seu sonho de ser cantora dificultado pelo marido. Mel Lisboa interpreta Theresa, jornalista recém-chegada de Paris, trabalha em editora e tem um relacionamento tranquilo, sincero, “descontraído” para a época, com seu marido (que é irmão do marido de Lígia). Os dois maridos são completamente diferentes, o primeiro respeitoso e amável, o outro, machista e agressor.
Várias cenas se destacam, ao som da nova “bossa”, os comportamentos, os figurinos, panoramas e cenários bem construídos para ilustrar aquele tempo de seis décadas atrás. Os momentos de machismo, de preconceito, de feminicídio são cenas fortes no vídeo. O crime cometido contra Lígia torna-se fato relevante nos capítulos a seguir e revela como, na época, atentados contra mulheres eram justificados como crime de honra (em boa medida ainda o são na atualidade). Pode-se inscrever como um dos objetivos da série demonstrar, para os tempos de hoje, como era ainda mais árdua a luta de mulheres que não se sujeitavam a serem objetos totalmente controlados por maridos ou namorados.
Se, em 2019, a cada sete horas, em média, uma mulher foi morta no Brasil justamente pelo fato de ser mulher, na corrente época de pandemia, a necessidade de distanciamento social e confinamento em casa, o sofrimento e sufoco enfrentados pelas mulheres, aumentaram. Na época abordada por “Coisa mais linda”, não existiam canais de denúncia, restando às mulheres apoiarem-se reciprocamente como pudessem, algo densamente assinalado pela união das três mulheres depois da tragédia que vitima Lígia.
Isso nos traz à memória o crime covarde contra a cantora Eliane de Grammont, artista de sucesso nos anos 1970. O lugar que tanto marcou a carreira de Grammont também foi palco de uma tragédia envolvendo a artista. O então cantor Lindomar Castilho, ex-marido de Eliane, a matou e aquele feminicídio estremeceu o país, assim como levantou ainda mais a luta do movimento de mulheres contra a violência doméstica e familiar. No entanto, somente no século XXI essas atitudes violentas foram criminalizadas, pela conquista da Lei Maria da Penha no governo de Lula e, em 2015, no mandato de Dilma, a tipificação do feminicídio.
Há, também, personagens masculinos que devem ser destacados, como o Capitão (Ícaro Silva) e Chico (Leandro Lima), que parece, este, uma mistura de João Gilberto e Chico Buarque. No período em que Malu batalha para abrir o clube de bossa nova, esses dois e Lígia tocam, cantam, emocionam. Um pouco mais adiante surge um novo talento da voz, que é Ivone, jovem irmã de Adélia, que sofre com o abandono dos pais. Uma produção de excelente estética, envolvente, crítica, com conteúdo!
Em pleno “Julho das Pretas”, o necessário enfrentamento do racismo exibido na série faz-nos lembrar das lutas de Winnie Mandela, combatente tenaz contra a segregação racial e a opressão sobre a maioria da população, de negros, em sua África do Sul e mundo afora. Refletimos ainda mais agudamente que as batalhas contra as opressões sobre as mulheres vem de longuíssima data, desde antes da Antiguidade clássica – uma questão histórico-social, como sublinhou Marx.
Produção audiovisual bem roteirizada, narrada e interpretada, pelo sucesso que a série atingiu deverá ter novas temporadas. Imperdível, e coisa linda, como as vidas das mulheres que resistem e lutam por direitos, e que geram novas vidas para manter a existência da humanidade. Estimula a manter acesa na memória, e homenagear as lutas das Terezas, Dandaras, Ivones, Marias, Heleniras, Marielles, e tantas mulheres negras que foram vítimas da opressão cruel, e que não podem ser abandonadas nos silêncios da História.
Fontes:
http://www.cresspr.org.br/site/wp-content/uploads/2020/10/CRESS_EM_MOVIMENTO_OUT_2020.pdf