Haroldo Lima, um gigante
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Publicado 24/03/2021 21:04
A notícia de que o golpe militar estava em curso, o engenheiro eletricista Haroldo Lima a recebeu no anoitecer de 31 de março de 1964, ao chegar a uma assembleia da Federação dos Trabalhadores na Indústria da Bahia. Tropas do exército já percorriam a Rua Chile, no cento de Salvador, prendendo suspeitos. Haroldo não perdeu tempo. Saltou para um velho jipe que pertencia ao pai, reuniu uma tropa de 20 jovens, algumas cargas de dinamite, alguns revólveres e fardas daqueles que, como o próprio Haroldo, haviam recém-cursado o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), do exército. A ideia era unir-se com Chico Pinto, prefeito de Feira de Santana, disposto a resistir ao golpe.
No entanto, sem a esperada resistência de Brizola, no Rio Grande do Sul, obrigado ao exílio, e do governador pernambucano Miguel Arraes, que fora preso, e ainda com o povo indiferente, a iniciativa legalista em Feira de Santana fracassou. Todos voltaram para a casa.
O tom algo rocambolesco da marcha juvenil continha, no entanto, traços de personalidade e caráter que fariam de Haroldo Lima personagem ímpar e maiúsculo no cenário político brasileiro. De fato, audácia, valentia, lucidez, cultura, a verve baiana que encantava multidões, a devotada fidelidade aos seus ideais marcaram a vida de Haroldo Borges Rodrigues Lima, desde Caetité, onde nasceu, trineto de um barão liberal, em outubro de 1939, até a morte silenciosa que o apanhou numa UTI em Salvador, na derradeira de suas tantas batalhas, desta vez contra a covid-19 e suas complicações, na madrugada deste 24 de março de 2021.
Ainda estudante na Faculdade de Engenharia da Universidade Federal da Bahia ingressou na Juventude Universitária Católica (JUC), onde viria a compor, junto com Aldo Arantes e Herbert José de Souza (Betinho) entre outros, um núcleo de esquerda que, em 1963, fundaria a Ação Popular. Por orientação dessa organização, Haroldo se juntaria a camponeses do sul da Bahia, numa plantação de cacau, passando os dias entre peões e os bandidos ali acoitados e, às noites, pelejando com as ratazanas que disputavam seu jabá. Ali, como centenas de outros companheiros por todo o país, se incumbira de despertar as lutas sociais.
Mais tarde, esteve entre os que conduziram a AP ao marxismo-leninismo e ao PCdoB. Estava na reunião do Comitê Central comunista invadido pela repressão política em dezembro de 1976, do que resultou o assassinato do histórico dirigente Pedro Pomar e de Ângelo Arroyo (o comandante militar do Araguaia), na morte por tortura de João Batista Drummond e a prisão dos demais. Barbaramente torturado, Haroldo amargou a prisão até a anistia, em 1979. Deixou a cadeia para mergulhar no intenso movimento de massas do período de estertor da ditadura, o que o levou à Câmara Federal. Cumpriu cinco mandados, o primeiro pelo PMDB e os demais pelo PCdoB que se tornara legal em 1985. Na Assembleia Nacional Constituinte, liderou a bancada comunista que, junto com João Amazonas, apresentou mais de 1.200 propostas, todas relacionadas à construção democrática no Brasil. No governo Lula, dirigiu a Agência Nacional do Petróleo (ANP), sendo um dos principais responsáveis pela formulação de uma política soberana para o pré-sal.
Ao longo dos 60 anos de sua ininterrupta atividade política, sob as mais diversas circunstâncias, algumas trágicas, Haroldo Lima escreveu uma história de profunda humanidade, pois devotada, toda ela, à construção de um novo tempo para o nosso povo, tempo de democracia, justiça social e soberania do Brasil, rumo à um outro tempo, este sim, radicalmente libertador, o socialismo. Foi militante dos livros e das ruas, das tribunas e da imprensa, do parlamento e das praças onde reunia o povo para defender seus direitos.
Mao Tsé-tung, que Haroldo admirava, escreveu em setembro de 1944: “Todo homem deve morrer um dia, mas nem todas as mortes tem o mesmo significado. Dizia um escritor da China antiga, Sema Tsien: ‘Certo, os homens são mortais, mas a morte de um pesa mais que o Monte Taichan, a de outros, menos que uma pluma’. Morrer pelos interesses do povo pesa mais que o monge Taichan, mas estar a serviço dos fascistas e morrer pelos que exploram e oprimem pesa menos que uma pluma”.A denodada luta democrática e socialista de Haroldo Lima, faz com que sua morte pese mais que o Monte Taichan. Ou melhor, fiquemos em nossa América: que pese mais que a Cordilheira dos Andes.