Foto e infâmia de Maria
Entre o retrato e a realidade, a infâmia paira sobre a memória de Maria, uma mulher cujo esquecimento revela uma história de opressão, injustiça e ironia.
Publicado 10/05/2024 12:34
Para lembrar o Dia das Mães, divulgo um trecho de romance inédito:
Entre quatro paredes, no entanto, a verdade se manifestava a partir do retrato de Maria. Naquele retrato da sala, a infâmia em múltiplos encontros. A começar da própria dignificação. Honram-se, desonram-se os mortos a partir da sua lembrança. Em toda casa brasileira da época, havia quadros de São Jorge e do Coração de Jesus. Entre eles, eram vistas imagens dos respeitáveis da família. Mesmo em uma passagem rápida, se fosse possível um voo pela sala, percebiam-se os valores da família para a mãe morta. Mas no caso de Maria, que família era a sua? Na sua pequena imagem, já havia um lugar de descarte. Ela não estava na parede, porque ali não poderia figurar na hierarquia dos santos da Igreja e do dono da casa, de terno, bigode, sério e belo quando moço. Também não poderia estar por suas dimensões físicas.
O quadro da imagem de Maria estava em um canto sobre a petisqueira, meio sombra, meio apagada luz. O estômago do narrador recebe um gosto amargo, não do falar, mas do crime sem punição, da injustiça que não se perdoa. Ora, se uma personagem daquele drama, se a sua morte desencadeou o que não estava escrito na sua beleza e alegria, o que dizer? Se a mulher digna de amor ganhava a morte do corpo e da sua memória, isso para nenhuma é digno. Mas havia um conteúdo infame para a sua alegria e o seu fim. Era como se a humanidade não tivesse futuro. Era como se toda a terra estivesse condenada à destruição, pois toda a sua excelência ardera em fogo, rumo ao nada. Do que adiantava ter maravilhas na poesia, nas artes, na ciência? Se elas se fundiam num pó de restos de fogo, foda-se a humanidade. E nesse caso, o diabo estava certo na gargalhada. O diabo era um sábio, pois desmontava com a sua inteligência as melhores intenções, que explodiam. Esse era o significado do inferno com as suas caldeiras? Antecipadas visões dos objetos de tudo que é fim.
Então, já ali, por sua posição entre os quadros, ou melhor, abaixo deles como a concessão de alguma justiça, longínqua justiça, a sua imagem estava quase no chão, ou melhor, quase chão sem que se pendurasse à parede. Ali posta, a sua imagem estava sob ameaça, pois de repente, numa limpeza de espanador, de esfregão de pano, virava e caía por acidente. Se não se realizou, deveu-se ao bom senso de que se quebrava o vidro do quadro, mas a imagem no papel se mantinha. Além do fato soberano, indesejado, de chamar a atenção para o que se tornara comum, anônimo como um copo esquecido sobre um móvel. Então aquela imagem sobrevivia. É sintomático que a criança olhava o retrato da mãe, mas não o ligava à sua própria vida de órfã. Seria um ponto distante, que nada lhe dissesse?
Então o pai projetara aquele retrato da falecida. Encomendara-o, mas depois onde poderia levantá-lo? Era preciso que não disputasse o lugar do quadro de São Jorge, do Coração de Jesus, e dele próprio entre os santos, jovem, bonito e bigode, então ele o mandara fazer menor que os idolatrados, e lhe pôs no verso da moldura um anteparo. A pretexo de ficar bem exposto. Ali, sobre o móvel, a falecida estava contente. E o narrador segura a mão para não acompanhar a gargalhada do diabo: feliz Maria. Tu eras feliz ali, Maria. A tua felicidade, assim em nova farsa, em um estado de crença, de suspensão da desgraça toda da tua vida. E acreditar era um bem de acreditar para a angústia. Acreditar num mundo bom para qualquer humano. Acreditar no amor – no amor, Maria! – para as pessoas carentes, que desejam nomes de carinho. Acreditar que havia justiça para homens e mulheres – justiça, Maria! -, não importava se gordos e esmolambados. Logo ali, Maria, porque grossa é a ironia para a tua felicidade. Por mais que o pensamento segure a mão, para não explodir em contar o teu contrário, amor, justiça e felicidade, a ironia não te conta sequer pelo avesso. Pois não se fala de genocidas que, coitados, estão mortos? Pois não se diz que exterminadores de humanidade são inteligentes? Pois não se refere a torturadores como heróis? Então por que não falar de Maria como A Feliz?
É que não eras conceito de discurso, mulher. Não eras abstração do drama que te feriu. Isso quer dizer, o retrato da felicidade estaria melhor exposto com imagens do inferno, entre chamas, projeção de holograma alto sobre as trevas. Assim posta e exposta, estarias mais dignificada, mulher. A tua imagem sobre as caldeiras exporia melhor a tua vida. Que era, perseguida desde menina, usada desde moça, zombada desde o casamento, assassinada ao ser mãe pela segunda vez, para ser lembrada naquele retrato sobre o móvel. Cuspiam em ti, Maria. Espalhavam infâmia sobre a tua luta, mulher. .
Há um poema de Manuel Bandeira que fala sobre a morte do nome de uma pessoa.
“Duas vezes se morre:
Primeiro na carne, depois no nome”.
Então ali o retrato de Maria esquecera o seu nome e a sua morte. Quando a ele se referia, o pai chamava-o de “a falecida”. Ora, melhor seria dizê-lo “a morta” ou “a que devia morrer”. Para a outra era claro, ali estava o o lixo da lembrança da maldita. E naquele quadro, justiça lhe fosse feita, havia o rosto, o lindo rosto da mulher que se fora. A pessoa, do pescoço para baixo era dignificada – dignificada! – por uma camisola rósea, estúpida até na dignificação: Maria jamais tivera uma camisola. Tal coisa tinha a qualidade do caro ou impossível para o seu corpo. Isso não era para as suas posses. Era lavar, lavar e lavar roupas, para assim receber o julgamento de imunda. Mas que pobre até hoje não é imundo? Então, imunda, estavas determinada na tua condição. Fazia sentido. Gorda e suja, era abstraída naquele esboço de camisola desenhada para o retrato. Na chamada “foto ampliada” que se concedia a quem falecera.
(De um romance inédito)