Entre Mulheres: A saga transgressora diante da violência patriarcal

A história do filme registra que os direitos das mulheres e meninas, a discriminação de gênero e a violência são questões tão antigas quanto a maior parte da história da humanidade

Em uma região interiorana do Canadá, um grupo de oito mulheres se encontram em um depósito de palhas para conversar sobre o rumo a tomar diante da ocorrência reiterada de violências físicas, abusos e estupros cometidos por homens da comunidade religiosa contra as mulheres e meninas do lugarejo. Mas, elas não tem muito tempo para decidir, somente 48 horas.

O filme Entre Mulheres, dirigido por Sarah Polley, do livro homônimo da autora canadense Miriam Toews, estreou no Brasil no mês de março, mas no momento ainda não está facilmente disponível na internet. Ganhou o Oscar de melhor roteiro adaptado, e também outro prêmio da Writers Guild of America, além do prêmio Independent Spirit Robert Altman, entre outros.

A película é impactante e intensa ao apresentar vozes discordantes do caminho a seguir para romper com o sofrimento, a dor, o medo e o ódio, frente aos quais também se colocam a fé, o perdão e o amor. As mulheres habitam uma comunidade em que se permitiu, ao longo do tempo, as violências mais vis contra mulheres e meninas, justificadas em bases religiosas, e como se fosse um “caminho para o céu”.

Com uma belíssima trilha sonora de Hildur Guonadottir musicista, violoncelista e compositora islandesa, que aumenta nossa angústia diante da realidade barbarizante ou a esperança de uma saída coletiva, somada às cores acinzentadas na maior parte do filme, as roupas fechadas e escuras, o clima de tensão diante da desesperadora situação, o filme Entre Mulheres consegue expressar em seu significado mais íntimo a profunda subordinação, a opressão patriacal da sociedade atual, uma vez que remonta ao ano de 2010 e não a um período do século XVIII ou XIX, que, no início nos engana.

As performances são majoritariamente das mulheres, tendo atrizes talentosas como Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley, Judith Ivey, Sheila McCarthy, entre outras, além de crianças. Há, porém, um homem em cena, o professor August (Ben Whishaw), personagem que destoa totalmente dos violentadores. Ele é encarregado de registrar as discussões numa ata por saber ler e escrever, uma vez que as mulheres e meninas são impedidas de estudar.

Os diálogos, na maioria das vezes, incorporam a crença ou descrença em Deus, tanto na imaginação de que as violências podem ser advindas do castigo divino ou de que foram vítimas de demônios e fantasmas. Contudo, quando elas percebem indícios e consequências dos ataques, como sangue nos lençóis, ou uma gravidez resultante de estupro, começam a questionar e buscar uma saída contra a selvageria, discutindo inclusive por que Deus as estaria punindo. Onde estaria a alegada a imensa bondade de Deus por que não as protegeu? Em plano secundário, há ainda uma personagem transgênero na trama, que também é vítima da tirania patriarcal e da misoginia.

Já estou incluindo esse filme em minha lista de preferências, por sua essência mobilizadora, pois, ao tratar das mulheres, o faz com uma conexão com o presente vivido com a juventude de duas adolescentes, com o passado na medida em que dialoga com nossas avós, com nossa ancestralidade, de como elas enfrentaram os traumas e situações de violências machistas e da perspectiva do futuro. Busca-se um caminho coletivo novo, que deixe o passado no passado. Perseguindo possibilidades futuras, uma das personagens diz: “tudo o que temos são nossos sonhos” (…) “precisamos descobrir se somos e o que somos(…)”. Os diálogos constituem belos registros, fortes, impactantes sobre dor, abuso, perdas e opressões. Porém, ainda sobrevive a esperança.

A história do filme, uma alusão feita pela escritora do livro a uma situação de violência e abusos em uma comunidade na Bolívia, registra que os direitos das mulheres e meninas, a discriminação de gênero e a violência são questões tão antigas quanto a maior parte da história da humanidade a partir da constituição do modo de produção escravista. Fazem parte de muitas tradições religiosas e culturais que se revelam no mundo de nossos dias, onde as relações patriarcais se apresentam em todo o tecido social. Como nos deixou assinalado Heleieth Saffioti, o patriarcado se engendra social e culturalmente como um “sistema” ou como uma forma de “dominação”, que se expressa em uma estrutura de poder que tem por base uma ideologia que embute sempre o emprego de violência. Um um processo de exercício de poder e controle do homem sobre a mulher, não natural, mas socialmente construído ao longo da história.

Ficha Técnica:

  • Título: “Entre Mulheres (no original, “Women Talking”)
  • Ano de produção: 2022
  • Direção: Sarah Polley
  • Estreia: 2 de Março de 2023 (no Brasil )
  • Duração: 104 minutos
  • Gênero: Drama
  • País de Origem: EUA

Referência: SAFFIOTI, H.I.B. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor