Em busca de um carinho – o próximo romance
O Portal Vermelho publica um capítulo do novo livro de Urariano Mota, intitulado “Em busca de um carinho”, ainda em produção. Para o autor, “o romance tem sido o mais pesado que já escrevi até aqui”.
Publicado 07/04/2023 21:06
Possíveis e impossíveis leitores, confesso que tem sido uma luta difícil escrever este romance, de nome provisório “Em busca de um carinho”. A mulher resistente, personagem querida a quem dedico o livro, explicará melhor a razão do título.
O romance tem sido o mais pesado que já escrevi até aqui. Nem tanto pela densidade, com os parágrafos repletos de reflexões sem um só refresco e alívio de pausa. Nem tanto pelo grau de espremer o duro carnegão de uma realidade que conheço. E nem tanto pela incompreensão que pode vir, com acusações de preconceito do livro contra os negros e prostitutas. Ao que defendo desde já: este autor é negro e ama as putas. Mas o romance é difícil também pelos descendentes dos modelos dos personagens, que vão se sentir feridos, embora eu não lhes queira mal.
Resta a saída de que poderei lançá-lo e me esconder. E seja o que Deus quiser. A seguir, um trecho mais leve, publicável a esta altura.
O gringo do Recife
Ali, naquele ponto, já havia o suicídio do seu coração. Pois ele, como um criminoso antecipatório, desprezara e matara a própria mãe. Sem forno crematório, físico, e sem gás produzido artificialmente. Apenas com as armas da vergonha por ter uma mãe miserável e tuberculosa. “Aquilo” atrapalhava a sua vida. Como ele poderia namorar, ser um bom partido, com aquela negra com fome em um casebre? Ora, não teria ele um orgulho de Jó a exibir as feridas como um bem do Senhor no céu. Se depois do seu ato na infância, houve feridas esqueléticas, só esqueletos ambulantes no campo de concentração, ele, Manuel, sem o saber, fizera semelhante com a negra mãe. Cantam na Igreja o belo hino “prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão” Numa triste paródia, ele se falava ‘prova de trair maior que tomar a vida de uma mãe”. E agora, ele estava no limbo entre saber o que faz e ignorar tudo. Entre o inferno e o purgatório. Numa fronteira da memória, que tenebrosa conformava a sua conveniência. Ele bem lembrava que a mãe rejeitava a comida para que ele pudesse comer. Comportamento universal das mães. Ele comia sem ver os olhos brancos e úmidos da mãe. Ele também os comia, porque grande era a sua fome. Mas ele mal lembrava que às vezes roubava a esmola de comida que levava para casa. Se ele conseguisse três pedaços de carne, para que levar os três? Comia voraz logo dois no caminho. Levava o terceiro, do qual a mãe aceitava o menor pedacinho, para que o menino, pobre filho, pudesse comer. Ele isso às vezes lembrava, mas não queria lembrar. Para que insistir na secreta infâmia? Era tão menino, que não sabia o que estava fazendo. Ela morreu tuberculosa, é certo, mas ele não podia saber a profundeza do mal à época. O certo mais ainda é que não ficou tuberculoso. Se ele passasse fome com ela, seriam dois a morrer. Então, ele seria o nada, no espaço escuro sob o chão. Ninguém jamais conheceria o prodigioso Manuel que estava agora bêbado a escutar Ray Charles. Bye bye, love. Como ele poderia adivinhar? O seu próprio dedo o aponta e a isso ele sorri. Foi Deus quem fez o seu destino. Portanto, “dedo, vira para outro lado ou eu te quebro”. Mas não notava que apenas ficaria mutilado, para ter a ilusão de viver feliz. Essa negação, que a imagem cortava, foi a sua primeira. Se ele pudesse apagar todas as negações que se fez para sobreviver, ou para ser vitorioso – pois ele era um homem vitorioso, saído da maior miséria para a riqueza do uísque importado e do falar inglês com as pessoas do Recife -, se ele pudesse apagar suas vilanias, espertas e cavalares humilhações, como lavar o penico sujo de esperma dos gringos, se pudesse esquecer as mulheres que intermediou para eles, como se fosse uma fada dos sonhos de boceta, se pudesse, enfim, esquecer o fato maior de ser um negro se escondendo da sua cor, então negar a própria filha seria apenas uma segunda negação. Mas antes valem algumas linhas sobre como ele escondia a própria cor.
De que maneira um homem se esconde de si mesmo? Se o espelho lhe revela a sua cor, por exemplo, com isso ele mesmo já está acostumado. Negro, nada demais, ele poderia falar. E passaria a coisas mais importantes. Mas não era bem assim para um homem que não desejava ficar entre os fodidos do Brasil. E para ele não estava aberto o caminho de Milton Nascimento, Lima Barreto, Abdias do Nascimento, Nelson Mandela, Machado de Assis. A sua trilha era composta de negações, nunca de revolta. Ele jamais poderia ser o homem que se olha no espelho e se fala: “vou me fazer um igual a todos a partir da gente da minha raça”. Isso para ele seria uma absoluta utopia. Não. O seu caminho era mais tortuosamente fantástico. Até no chapéu norte-americano, elegante, de homem branco dos Estados Unidos que usava, era outro. Como um ótimo aprendiz de línguas no geral, e do inglês em particular, o seu caminho era de imitação de sons, gestos, frases e fezes. Nisso não vai um trocadilho de palavras. Pois até nas fezes ele queria ser gringo. Mas como? Simples, os gringos possuíam o cheiro forte catinga das carnes enlatadas, dos cremes de amendoim, das camisas perfumadas à americana que traziam nos navios do cais do Recife. Se não eram excreções autênticas, eram bem parecidas, e tanto, que já eram gringas. Então ele projetou cheiros em sua própria pele. Mas no papel e na interpretação de um grande imitador. The Great Pretender, ele ouvia nos Platters, sem se dar conta que os traduzia para a sua própria vida. Então, ele já não era negro a partir das mulheres com quem vivia e pagava. Devia haver uma estranha fuga e mistura nos tons da pele. Pois se um homem está entre negros musicais, ele não passa de um deles. Ou o pior deles. Mas se está ao lado de um branco, ele já não é tão negro assim. É um negro especial, de tons mais suaves ou esmaecidos.
E assim Manuel, se não chegava a afrontar o descrédito público, indo de mãos dadas com uma mulher branca pelas ruas, nas festas em que recebia convidados, todos sabiam, ele era o marido da branca. Tão natural. Outro modo era nas roupas, sapatos, relógio e perfumes que usava. Nada mais impróprio aos usos da sua gente de cor. Mas que “sua gente de cor?”. Ele não era um deles, e por isso adorava umas camisas dos oficiais de bordo com que era presenteado, já usadas, mas gringas. Era enfeitiçado por suas calças jeans, seus sapatos, meias, seu hálito maravilhoso de carne enlatada Wilson. Seus peidos made in USA. E para completar a transformação, com o seu magnífico inglês de Nova York. É certo também, havia negros norte-americanos falantes de Nova York. Sim, mas eles não eram o seu modelo. Manuel era um branco disfarçado em pele dos trópicos. Um gringo queimadinho de sol, como os inimigos a ele se referiam. Por força da maldade, eles não o enxergavam. Manuel era um negro escondido, escuro só nos óculos Ray-Ban. Ele seria como um homem oculto a olhar ele próprio fantasiado, no carnaval de todos os dias. A sua fantasia não era de pierrô, arlequim, capitão do bumba meu boi ou de La Ursa. A sua fantasia era camisa de seda, jeans, óculos Ray-Ban, chapéu à moda de agente do FBI de filmes, sapatos confortáveis, lanterna à qual chamava de flashlight, dólares no bolso. E seu nome era Johnny Immanuel. Ou Johhny. Se fosse negro, os inimigos diriam que ele só queria ser as pregas de Odete. Ou “negro ridículo”. Mas os quase amigos – pois amigos mesmo ele não os possuía -, os quase amigos diriam dele, “que camisa bonita, como ele sabe se vestir”. E os fodidos de origem como ele, que continuavam fodidos, “eu queria ser Johnny”. E desse modo, numa representação, ele achava que fugia da sua imagem no espelho. Físico baixo, escuro, atarracado. “Eu não sou este”. E virava o rosto de lado, a buscar sua face ideal. Ou seu pretendido corpo, alto, forte, com cheiro de perfume para homens dos Estados Unidos. “Perfume para homem não existe como o da América. Lá, eles sabem perfumar um homem com H maiúsculo. Aliás, com M de Man”. Um Man logrado, já se vê. Nele existiam as fronteiras de metade branco, metade negro. Nem tanto por sua mestiçagem de mulato. Mas por conturbada idealização. Em Johnny Manuel já se antecipavam os negros fascistas de 2022 no Brasil. Era devastador o conflito que procurava harmonia com fúria, que seu corpo encarnava. Uma harmonia que só se expressava no caos orgânico. Cão de si mesmo, a luta entre antagônicos antecipava o câncer que viria. Luta sem glória desde o nascedouro. Luta que era só derrota, humilhante e desonrosa derrota adiante.
Mas não agora, enquanto anda pelo cais. Admirado pelo volume e timbre másculo da voz, é posudo firme e “lorde”, todo lorde, com o perfume misturado ao suor no calor do Recife. Ele é o Johnny. Ou negro Johnny, o amigo inimigo é quem sabe. Que inglês maravilhoso ele possui! Quem o desafia para a fala e pronúncia norte-americana? Quem? O branco Johnny chega a conhecer variantes e acentos e palavras do Sul e Norte dos Estados Unidos. Sabe até a variante britânica, que ele cita como uma curiosidade, pois o som bom mesmo é o da sua terra, Nova York, de onde saboreia os tês falados erres. Assim como Hércules em filme de Hollywood ao receber os bárbaros. Johnny se põe assim, forte, másculo e musculoso, “o que vocês querem? Pensam que são o quê? Eu sou Johnny, The Man”. Ah, o narrador tem que segurar os dedos para não afundar em ironia. E retorna para ver o corpo de Manuel que é substituído pelo que ele veste. De calças e camisas usadas pelos gringos, é um americano nos trópicos. Se estivesse hoje vivo e lesse a frase “um americano nos trópicos”, ele a tomaria como um elogio e reconhecimento. Pois ele não queria ser outra coisa. Melhor dizendo, não queria ser outro homem, outro Man. As palavras da linguagem que são feitas, também fazem um novo homem. Novo no sentido de não ser o mesmo de antes. Isso vale dizer, o inglês falado por Johnny o transformou em um Johnny autêntico, mais legítimo que os cigarros Chesterfield ou Pall Mall. Aquele ideal buscado pelos serviços de espionagem, que projetavam falsas identidades nos seus espiões como naturais de outro país, Johnny Manuel o conseguiu por notável força de vontade. Em nova ironia, ele, um anticomunista, conseguiu o que a União Soviética desejava dos seus espiões educados como se norte-americanos fossem. Ah, soviéticos, vocês não sabem do que um coração em fuga é capaz. Um coração que era só vontade de apagar o negrinho do casebre no mangue, um negrinho que matara por vias indiretas a própria mãe, ah, não sabem do que a fuga da própria história é capaz. Pois Manuel, para a sua felicidade vicária, era um gringo completo. Até na cor, que já não a enxergava. Até no nariz, que afilara por desejo e tentativas inúteis de pregador de roupa. Até nos lábios grossos que ele escondia sob o bigode. Até nos discos e nas cadeiras de alumínio de armar, que foi dos primeiros a possuir no Recife. De um homem assim, como dizê-lo? Era um gringo.
Man logrado. Fora das fábulas, um homem de lata continua a ser de lata. Perdoem a crueza. Mas um espantalho continua a ser um espantalho, por mais que agite os braços de pano em camisas vistosas ao vento. Não é um homem de fato, por mais que o imite. Aquele simulacro de norte-americano recifense não conseguia ser o próprio norte-americano. Se ele tivesse nascido nos Estados Unidos e visitasse o Recife, se conhecesse o português como segunda língua, poderia até ser. Em Johnny Manuel ficava uma pasta untuosa que lhe escorria no suor, assim como uma tintura que se denuncia no cabelo. Pior até que alisante no cabelo crespo. Pois ela, em vez de cor negra, escorria como uma cor marrom, não de chocolate amargo, mas de fezes. Então, a caminhar no cais com a sua Lee, os inimigos viam escorrer-lhe fezes pelas pernas. Mas o que nem os inimigos podiam ver era que a gordura repulsiva que descia de Johnny era maior e anterior. Ela descia da vergonha humana diante da sua negação. Como se nega assim a própria alma? Como negar alma em corpo de homem que um dia talvez quem sabe, poderia ter sido negro? O vexame da merda lhe descia pelo corpo. Não adiantava lavar, esfregar, pôr perfume. Mas ele não via, e nem queria ver, nem poderia ver àquela altura. E tão cego estava Johnny, que não via a sua representação sonhada no fracasso, na medida da ambição de ser um gringo. Ao representar um louco, ele se julgava o próprio louco, do hospício da Tamarineira às clínicas psiquiátricas da gente bem. O louco da elite.
Nem mesmo a divisão esquizofrênica era a sua. Ele era o outro. A gargalhada do diabo se aproximava. Enquanto lhe escorriam fezes nas calçadas, enquanto seu jeans se mostrava escuro, enquanto o rosto era uma máscara marrom, massa pastosa, que não poderia limpar em panos densos, Johnny era apontado às costas. Ele não teve a sorte de ser vaiado pelos colegas do porto, até mesmo por brasileiros colonizados que não tinham a sua perfeição no inglês. “Quem és tu? Merda, você é merda”. A vaia seria um insulto devastador, é certo, mas poderia ter tido um efeito curativo. Para não dizê-lo purgativo. Uma revolta invejosa, ele diria. Uma infâmia indigna da sua altura, ele poderia falar. E o diabo gargalhava pelo conhecimento do que viria. Mas da vaia e do insulto alguma coisa poderia ficar como uma revelação. “Eles são ignorantes. Eles são invejosos. Eles são burros. Confundem um homem com fezes. Eu não sou isso. Mas talvez alguma coisa dessa calúnia seja verdade”, ele poderia falar. Uma decomposição do caráter revelado. Que não era o seu ideal. Mas Johnny Manuel não percebia que a sua melhor história era o seu drama. A inteligência e a sensibilidade eram impedidas pela mais louca pretensão. O seu caráter plástico, de artista, era desvirtuado pela glória desequilibrada. Pela vitória, vitória contra os derrotados, contra os fodidos.
É que Johnny Manuel ignorava a melhor arte de um artista: fazer das suas características, transformar sua realidade em estilo pessoal e obra. O Aleijadinho, nele, teria membro de ferro para ocultar a falta. Pois o amadurecimento pela humanidade não era o seu desejo. Ele o renegava entre suas negações. Para que falar que roubara alimentos da própria mãe? Para que contar que ajeitava o pau dos gringos nas putas do Recife? Para que se mostrar como um homem que veio do lixo, mas se erguera do betume e dos esgotos? A sua luta para sobreviver era um talento a ser contada. Mas aprofundar a miséria do homem que o atravessava nesse crescimento, o preço que pagara muito além das qualidades intelectuais, contar o real, não estava no seu programa. Melhor viver como um novo gringo. O único gringo do Recife, nascido, construído e deformado por uma sobrevivência especial. O melhor renegador da própria carne.