Ditadura militar: os nomes e os fatos

As anotações do mês passado sobre o “aprimoramento” da expressão ditadura militar valeram-me comentários e mensagens bem acima da média habitual. Sinal evidente de interesse pela questão que tinha sido reativada por Pedro da Rocha Pomar no artigo “O modismo “civil-militar” para designar a Ditadura Militar”. 

A maioria dos comentários expressou concordância (o que está longe de sempre acontecer com os que me honram lendo meus artigos), mas houve uma crítica à "total ausência da menção ao imperialismo na concepção, realização e consolidação do golpe de 64", bem como quando trato da "natureza histórica” do regime.

Na verdade, não uso, naquele contexto, o termo "natureza", nem lá me propus analisar a história do regime. Esta, com certeza, tem grande pertinência no aprofundamento do debate. Mas, insisto ainda uma vez, o tema de minhas anotações iniciais era mostrar o pedantismo da "novidade" ou modismo “civil-militar”, para retomar a expressão de Pomar.

Deixei claro que estava discutindo o nome do regime, não o conjunto dos interesses ideológicos, políticos e econômicos operantes no golpe e investidos na ditadura, e que esse nome devia corresponder ao modo de exercício do poder de Estado. Se fôssemos incluir nele todas as classes sociais, aparelhos ideológicos e repressivos portadores daqueles interesses, sem esquecer o imperialismo estadunidense, que deram ou apoiaram o golpe de 1964, teríamos de declinar um longo polinômio, à maneira duma ladainha, cada vez que a ele nos referíssemos.

É bom notar que a discussão básica sobre o nome do regime começou com os que o chamavam “autoritarismo” (termo preferido nomeadamente pelo festejado sociólogo F.H. Cardoso), em vez de ditadura. Aquele termo pretendia-se mais “científico”, mas servia sobretudo para diluir a força semântica deste último. Foi pois um avanço substituir, na cultura política nacional, um nebuloso eufemismo por um termo político claro e ademais, consagrado na luta, deixando falar sozinhos os cripto fascistas e outros trombadões ideológicos da extrema-direita, que ainda celebram a “Revolução” de 1964.

Sem dúvida, e esse é um dos pontos que merecem ser aprofundados, a ditadura militar não foi uma ditadura dos militares e sim da cúpula militar reacionária. É sempre importante lembrar que no primeiro expurgo promovido pelos golpistas, em 11 de abril de 1964, dez dias após a vitoriosa quartelada e dois dias após o anúncio do primeiro Ato Institucional, além de serem cassados os direitos políticos de 102 cidadãos, 122 oficiais foram expulsos das Forças Armadas.

Os comunistas e nacionalistas de esquerda não foram os únicos atingidos pelo primeiro “ciclo punitivo” da Contra Revolução. Os oficiais “legalistas”, que, sem ter opiniões de esquerda, se recusaram a aderir ao movimento sedicioso, foram, na maioria, passados para a reserva. Essas medidas não pouparam escalão nenhum da hierarquia. Como salientou o brasilianista Alfred Stepan, em 1968 apenas cinco dos 29 oficiais promovidos ao generalato por Goulart ainda estavam na ativa, mas nela permaneciam 17 entre 29 oficiais promovidos ao generalato por seus predecessores.

No total, até 1970 cerca de 1.500 militares, entre oficiais e suboficiais (os dados são incompletos), foram excluídos das FFAAA. Duas conclusões decorrem imediatamente desses dados: (a) os militares foram provavelmente a categoria profissional mais fortemente atingida pelos expurgos promovidos pela ditadura; (b) o expurgo foi o primeiro e decisivo passo para impor, via lavagem de cérebro, o pensamento único da reação e da “segurança nacional”.

Mencionamos o primeiro Ato Institucional, mas é interessante lembrar que ele não tinha número: mais exatamente, só o recebeu um ano e meio depois, quando os golpistas expeliram o segundo. É bem conhecida a recomendação de Maquiavel aos príncipes, de fazer todo o mal de uma só vez para depois distribuir o bem pouco a pouco.

Foi o que tentaram os cripto fascistas do Comando Supremo da Revolução que assinam aquela peça espúria. Quem a redigiu, o jurisconsulto Francisco Campos, não era apenas cripto, mas fascista explícito e histórico.

Curiosa, mas não estranhamente, foi ele quem lançou, logo na primeira frase do preâmbulo (dirigido “À Nação”) daquele Ato que é uma mancha infame na história política brasileira, a “nova” expressão aqui em pauta: “É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar (nós grifamos, JQM) que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro”. Perspectiva na verdade bem miserável, tanto que, incapazes de distribuir o bem pouco a pouco após uma dose cavalar de mal, como recomendou aquele grande pensador de Florença, os golpistas no poder progrediram do mal ao pior.

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