Dines e os demônios
O jornalista Alberto Dines publicou no Jornal do Commercio de Recife, em 26 de abril passado, um cáustico libelo contra o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, acusando-o de ter retomado, no discurso que fez na abertura da conferência da Organização das
Publicado 09/05/2009 14:21
A mesma ONU, é bom lembrar, que na Resolução 3379 de sua Assembléia Geral em 10 de novembro de 1975 declarou o sionismo uma forma de racismo e de discriminação racial. O fato de que, com o colapso da URSS e a recolonização militar do planeta pela cartel bélico da OTAN, essa decisão tenha sido revertida, não prova que ela era “viciosa”, como pretende Dines. Prova apenas que a perspectiva de uma chuva de mísseis assusta qualquer um.
De qualquer modo, em matéria de repúdio, ninguém bate Israel, que em numerosas votações na ONU, mesmo recentes, recebeu apenas, além do habitual apoio da grande potência hegemônica, o sintomático sufrágio das Ilhas Marshall ou de algum outro protetorado do “colosso do Norte”.
Alberto Dines não se deu ao trabalho de dizer o que entende por “valores ocidentais”. Que isso o agrade ou não, uma das expressões culminantes desses tais valores, pelo menos segundo os conformistas de todos os matizes, é o Santo Papa de Roma. Cargo atualmente exercido pelo Panzer-Papa Bento XVI, que quando ainda se chamava cardeal Joseph Ratzinger, era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, eufemismo para designar a Santa Inquisição. Nessa qualidade, em entrevista coletiva no dia 31 de janeiro de 1998, ao receber o título de doutor ''honoris causa'' da Universidade de Navarra (uma das principais bases da Opus Dei), esclareceu que ''A Inquisição não era tão obscura quanto se crê'' (Fonte: El País de 3 de fevereiro de 1998). Não será preciso lembrar ao articulista, autor de uma alentada biografia do teatrólogo judeu brasileiro Antônio José da Silva, que seu biografado, a despeito de professar a religião católica, foi preso pela Inquisição em 1737, juntamente com a mãe e a mulher, torturado, garroteado e queimado num Auto-de-Fé em Lisboa em outubro de 1739, por obra e graça dos “não tão obscuros” inquisidores, que o acusavam de “judaizar em segredo”.
Decepciona ver um intelectual que construiu sua reputação profissional criticando o jornalismo subserviente, palpiteiro e vulgar, recorrer agora a pífios chavões para desqualificar o discurso de Ahmadinejad: “É uma das peças mais racistas e mais intolerantes desde o suicídio de Joseph Goebbels em maio de 1945”. “A delirante demonização embutida no discurso de Ahmadinejad no dia 20 de Abril não é uma iniciativa isolada”. “A Era da Demonização encontrou (em Ahmadinejad) o intérprete ideal e a vitrine perfeita para ser entendida e visualizada”. Desse jeito parece que deveríamos dar razão o presidente G.W.Bush, que planejava aniquilar o Irã como o fez com o Iraque.
Mas o pior atropelo do periodista à verdade histórica já vem anunciado no título do panfleto, “Lembranças do nazi-fascismo”, que alude não somente a Ahmadinejad, mas em boa lógica a quem quer que incida na “viciosa comparação” entre o sionismo e o racismo. Ele oculta com essa qualificação pejorativa as lembranças verdadeiras do fascismo, que não são aquelas que ele diz. Com efeito, o partido Likud e seus sócios extremistas que governam o Estado sionista brotaram dos ovos viperinos dos mais odiosos movimentos terroristas israelenses, Irgun e Stern. Todos eles se originaram do movimento dito “revisionista”, fundado pelo sionista Vladimir Jabotinsky, cuja efusiva simpatia por Mussolini (a quem ele enviou, em 1922, uma carta entusiasmada) manteve-se mesmo depois que este começou a lamber as botas de Hitler.
Lembrando essa filiação, Maurício Tragtenberg (num artigo de 1982: “Menachem Begin visto por Einstein, H. Arendt e N. Goldman”) frisou a importância da inspiração fascista na formação da Irgun: Beguin é fruto de uma formação ideológico-política inerente ao Movimento Revisionista criado por Jabotinsky. Esse Movimento adotava a saudação fascista, estilo militar e camisas negras. Um de seus líderes, Aba Haimeir, colaborava no jornal israelense ''Doar Hayom'' numa seção intitulada ''Diário de um Fascista''. Este em 1924 envia seu representante, Dr. Mancini, à Palestina para conhecer o Partido Fascista Judeu. O Primeiro Congresso do Movimento Revisionista de Jabotinsky-Beguin se realiza em Milão em 1932, tendo como slogan Ordem Italiana para o Oriente. Devido ao apoio do Movimento Revisionista à guerra de Mussolini contra a Etiópia, a agência noticiosa fascista ''Oriente Moderno'' saudava o Congresso Revisionista realizado em 1935”.
Jabotinsky admirava a fórmula de Max Nordau, parceiro de Theodor Herzl na fundação do movimento sionista : “estamos indo para a Palestina a fim de estender até o Eufrates as fronteiras morais da Europa”. E pontificava: “Pertencemos à Europa, graças a Deus; nos últimos dois mil anos ajudamos a construir a civilização européia”. Dupla injustiça histórica: foi o Califado de Córdoba que assegurou a reconstrução da cultura judaica e foram os mui europeus e católicos Fernando e Isabel que empreenderam, quatro séculos e meio antes de Hitler, a primeira tentativa de aniquilamento dos judeus.
Procedimento detestável numa polêmica é imputar ao adversário algo que ele não disse. Segundo Dines, “a arenga do líder iraniano negou e minimizou o Holocausto”. A frase agride num só golpe a lógica e a verdade dos fatos. Acusa Ahmadinejad de negar e de minimizar o Holocausto. Antes de mais nada, holocaustos houve muitos; isso de singularizar aquele cometido contra os judeus pelo Ocidente burguês e racista ajuda a ocultar os outros. Ademais, ou dizemos que um fato não ocorreu ou admitimos que ocorreu, mas não foi tão grave quanto consta. Segundo Dines, o presidente iraniano teria dito que além de não ter ocorrido, “o” Holocausto foi muito pequeno. Mas Ahmadinejad não fez nem uma coisa nem outra. Como notou o coronel aviador Sued Lima, membro do Comitê de Solidariedade ao Povo Palestino, em mensagem enviada à Associação 64/68 Anistia, o único parágrafo em que o presidente iraniano se refere ao sofrimento dos judeus na II Guerra Mundial é o seguinte: “A seguir à II Guerra Mundial, recorreram à agressão militar para tornar sem lar toda uma nação sob o pretexto do sofrimento judeu e enviaram migrantes da Europa, dos Estados Unidos e de outras partes do mundo a fim de estabelecer um governo totalmente racista na Palestina ocupada. E, de fato, em compensação pelas terríveis consequências do racismo na Europa, ajudaram a levar ao poder o mais cruel e repressivo regime racista na Palestina”.
Sued Lima teve o cuidado de verificar a versão em inglês referida no site Voters for Peace, mas não encontrou nenhuma discrepância significativa em relação à versão em português. Concluiu que Dines provavelmente pautou sua diatribe “na reportagem legendada da TV Globo, quando se traduziu o que não foi dito para se vender a idéia que interessa”. O grande truste audiovisual da “famiglia” Marinho continua (como no caso Proconsult, na ocultação das Diretas Já, nos disparos de jagunços contra o MST, etc. etc.), na linha de frente da desinformação.
Não é preciso grande argúcia para prever que quanto mais se aproximar a hora da visita de Ahmadinejad ao Brasil, mais virulenta se tornará a intoxicação anti-iraniana.