Crise no rastro da crise [1]

A Augusto César Buonicore (1960-2020), camarada querido, exemplo de dedicação ao trabalho intelectual marxista

“Simetricamente, uma queda do valor do mercado de ações diminuirá a capacidade de tomada de empréstimos para fins especulativos e aumentará o peso das dívidas em relação ao valor dos ativos” (H.P. Minsky, 1986). [2]

A detonação de uma nova crise global estava sendo anunciada para meados deste ano ou especialmente em 2021. Antecipou-se. Como se devia saber há muito, datar a espoleta da crise capitalista é coisa para profissional de charlatanismo. Até porque a captura ensandecida do mais-valor subjetiva a “parada” brusca do investimento, tornando o cálculo fenômeno da esfera psicológica dos estrategistas dos grandes grupos capitalistas. Mas há, sim, os determinantes da gestação da crise.

Especulação, ciclo e crises

Marx, por exemplo, já tinha ido direto ao ponto, no sentido da caracterização do ápice a que chegara a incerteza/instabilidade do regime do capital (fictício), em suas “formas mais desenvolvidas”:

“[o] sistema de crédito: por um lado, ele desenvolve a mola propulsora da produção capitalista, o enriquecimento mediante a exploração do trabalho alheio, até convertê-lo no mais puro e colossal sistema de jogo e fraude” (K. Marx, “O Capital”, v. III, Boitempo, 2018, pp. 499-500).

J. M. Keynes, [3] por sua feita, interpretava “o fenômeno da crise” (o ciclo econômico em suas perturbações) uma ocorrência repentina e violenta; não sendo idêntico o característico na passagem da fase descendente para a ascendente: “não é tão repentina”, escreveu.A precariedade do conhecimento para as previsões era questão central na definição keynesiana sobre a dinâmica do ciclo econômico.

Ou como bem sintetizou L. Belluzzo, em “O momento Minsky” ainda em 2010 [4] e exatamente num momento em que as chamadas “dívidas soberanas”, ou seja, o espetacular aumento dos déficits públicos começava a encharcar a União Europeia, em especial a zona do euro: nada adianta em iludir-se com o conhecimento do passado ou com as toadas do presente, projetando essas tendências para o futuro; o mundo dos homens e de seus negócios não está sujeito a um “comportamento probabilístico”. Na “incerteza irredutível”, controladores da riqueza e do crédito lançam mão de informações, avaliações, crenças e regras costumeiras que (quase) todos os outros assumem.

O fato é que, diante de vaticínios sombrios, especialmente em 2018, para ganhar uma grana extra de burgueses rentistas querendo saber onde aplicariam seus ativos, adivinhadores de toda a parte apareceram para “jogar” pitacos no mercado. Capitalistas, grandes empresas e bancos continuaram apostas na especulação de alto risco – como sempre fazem – para tentar lucrar mais ainda. Enroscaram-se todos e mais uma vez. Seguiram-se o pânico e a debacle novamente.

Impasses inéditos da economia capitalista

Desde de 2017, quando um suspiro (real) de crescimento se ensaiou em países do capitalismo central, após o Fed (Banco Central dos EUA) passou a subir sequencialmente a taxa básica de juros (dezembro de 2016). Afora um crescimento econômico americano irregular, a estagnação central voltou a se pronunciar.

Como mostramos no artigo “A economia global afunda” (16/01/2020) [5], a economia mundial já desacelerava francamente, em marca batida à recessão. Evidentemente, não foi o “Coronavírus” [6] a causa da recente tormenta financeira:  a pandemia virótica – a faísca – “fechou” as bolsas, e fez desabar o preço do barril de petróleo. Mimetizou, em grande medida, a chamada “crise do petróleo” (1973 e 1979) – a curva de preços do barril invertida -, que na verdade se assentou sobre o fim do crescimento dos “anos dourados”, ou a estagflação manifestada na severa crise de 1974-5, nos EUA.

As questões de fundo, que estavam conectadas, sinteticamente, eram: 1) a ultravalorização acionária nas bolsas de valores de todo o mundo; [7] 2) falência múltipla das respostas de políticas monetárias dos bancos centrais (Quantitave Easing; juros zero e negativos) para expansão do crescimento, multiplicando o já existente “excesso de liquidez” [8]; 3) a “guerra comercial” (e de capitais) quase colapsando o comércio mundial, deflagrada pelo governo Trump; 4) taxas de investimento em persistente baixa nas principais economias capitalistas. Observe-se, [9] a propósito, o comportamento da riqueza financeira dos EUA (linha verde) em diacronia com capital de investimento (linha vermelha) desde 1980, década da ascensão neoliberal:

Entretanto, em relação ao ponto 4, o que vem ocorrendo nos EUA, em especial (jan-nov./2019), é uma impressionante disjuntiva entre ultra-valorização de ações e bônus, assim como forte desvalorização do preço por ação desses capitais fictícios! [10]

De outra parte, em direção oposta à tese de Larry Summers (a insuficiência de demanda levou à “estagnação secular” no capitalismo), entre 2017-19 há, (i) nova expansão do endividamento familiar americano; (ii) gigantescas dívidas das empresas e bancos globalmente. Observe-se que, no total, governos, empresas, bancos e famílias devem atualmente US$ 253 trilhões, um recorde equivalente a 322% do valor do PIB (Produto Interno Bruto) global, segundo dados do Institute of International Finance (IIF); [11] (iii) o crescimento do valor médio do salário-hora nos EUA, fortalecendo (neste aspecto) o consumo residencial/familiar, como se representa o gráfico abaixo:

Indústria global já mergulhava

De fato, a atividade industrial já desabava, em outubro último, nas economias desenvolvidas do centro capitalista. A produção manufatureira global se enfraquecera desde que Trump “começou a elevar as tensões comerciais, no início de 2018 – independentemente das oscilações cambiais”, analisava o jornal “Financial Times” (Valor Econômico, 02/10/2019).

Como mostrou o relatório IEDI (“Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial”), sobre o desempenho da indústria mundial, no ranking internacional de crescimento da produção indústria com 44 países para o acumulado (jan-out./2019), o Brasil ocupou a 33ª colocação, com um resultado de -1,1%. Portanto, à frente de países industrializados, como Japão (-1,7%), Coreia do Sul (-1,8%) e Alemanha (-4,0%), mas muito abaixo do dinamismo referente à mediana da amostra considerada (+0,9%) (“Carta IEDI”, Edição 969 – 10/01/2020).

Colapso no comércio mundial

Ademais, junto a marcha da retração industrial, o comércio mundial simetricamente já havia despencado:

Somou-se a isso que o principal indicador da mensuração do gerenciamento da compra de maquinário e equipamento, o PMI (Purchasing Managers Index, conhecido como Índice de Mercado dos Gerentes de Compra), revelara que a atividade manufatureira dos Estados Unidos (agosto/2019) estava abaixo de 50, [12] pela primeira vez desde 2009, junto aos do Japão e da zona do euro, também abaixo de 50, uma recessão real manufatureira já se estabelecia.

Perspectivas sombrias

Deflagrado o colapso, é revelador o comentário do FMI (Tobias Adrian,11 de março de 2020) [13], onde clamava os bancos centrais a “agir rapidamente injetando liquidez e reduzindo as taxas de juros”, para evitar uma possível crise de crédito (“credit crunch”). E reconhecia que os mercados vivenciaram uma “queda acentuada no rendimento dos títulos soberanos em muitos países ao redor do mundo” (gráfico abaixo).

Com a debacle nos mercados de ações, especialmente do centro capitalista, (Estados Unidos, a zona do euro e o Japão), os spreads de crédito (interbancário) aumentaram em todos os sentidos – prossegue Adrian -, à medida que os especuladores migram para ativos mais seguros. “Títulos de alto rendimento e títulos de países emergentes são particularmente afetados por essa mudança. Consequentemente, os spreads nos títulos de países emergentes e pré-emergentes denominados em dólares norte-americanos aumentaram bastante”, arremata (gráfico abaixo).

          Assim, a vaticínio de Hymann Minsky, aposto na abertura desse artigo, novamente se fez pleno, agora mesmo!

Revelador e patético, o economista do FMI clamar por juros baixos e mais injeção de liquidez: negativos munda afora, os juros já não rendem mais nada, ou pior ainda, investidores estão pagando para emprestar! E tampouco serviram para o investimento produtivo, escorrendo para ativos de alto risco, bem como para a recompra de próprias ações corporativas.

O que revela ao grau de incerteza sistêmica absoluta em que a crise iniciada em 2007-8 deixou de presente ao capitalismo global. Ademais, um dos grandes problemas que entravam a saída do mergulho depressivo que completará 13 anos, desde logo sufocada pelos “papagaios” financeiros das hipotecas subprime – e a seguir pela falência do banco Lehman Brothers – é exatamente o “empoçamento” incalculável de capitas fictícios (e não) que não conseguem ser destruídos, notadamente os demandados a títulos públicos, estes na verdade trocados aos trilhões por “papéis podres” [14] da banca privada e de megaespeculadores.

Em “xeque duplo” – e infestada por vírus -, os rumos da economia mundial são incógnitos. O alto custo das dívidas, de novos empréstimos e depreciação de moedas já se espalham à periferia subdesenvolvida. [15]  Sabe-se bem que, a burguesia “financeirizada” receitará mais desemprego, miséria e sofrimento às grandes massas trabalhadoras. O que exigirá mais reforço dos combates de classe contra a desintegração do neoliberalismo.

NOTAS

[1] Robert Guttmann foi enfático e certeiro na análise da crise que explodiu em 2007-8: “Uma crise dessas nós havíamos experimentado anteriormente de 1873 a 1879, 1929 a 1939, ou 1973 a 1982, de forma típica dura vários anos, engole grande parte do globo, e não chega ao fim a menos que mudanças fundamentais na política ou nos arranjos institucionais tenham sido posicionados para resolver os desequilíbrios subjacentes àquela crise”. Ver: “The heterodox notion of the structural crisis”, 2015, trad. Mariana Venturini.

[2] Antes, ele afirmara: “Quando a posse de ações é financiada por empréstimos, uma elevação das cotações aumenta a capacidade de tomar dinheiro emprestado para fins especulativos”. Segundo Minsk, a maneira particular da emergência do boom especulativo, ocorrente após um período “relativamente tranquilo” tem grande relevância nas economias modernas. E a “Hipótese da Instabilidade Financeira” possui dois fundamentos: 1) o livre mercado não leva a um equilíbrio sustentado, com pleno emprego e preços estáveis. 2) Os ciclos “de negócios” [instabilidade estrutural na dinâmica do crescimento das economias capitalistas modernas] devem-se às suas “propriedades financeiras essenciais”. Ver: “Estabilizando uma economia instável”, P.H. Minsky, Novo século, 2013, pp. 191-6.

[3] Ver: “ A Teoria geral do emprego, do juro e da moeda”, J. M. Keynes, Abril Cultural, 1983, pp. 217-221. Segundo Keynes, a explicação mais “essencial” sobre a crise reside num “repentino colapso da eficiência marginal do capital” (idem, p.218); isto é, a estimativa de sua taxa de retorno.

[4] Ver o artigo de Belluzzo aqui:

[5] Aqui: https://dev.vermelho.org.br/coluna/a-economia-global-afunda1/

[6] Eric Toussant argumenta também que a deterioração da economia dos EUA é muito anterior a eclosão da epidemia na China. Aqui: https://rebelion.org/no-el-coronavirus-no-es-responsable-de-las-caidas-en-las-bolsas/

[7] No início de fevereiro de 2020, ações e bônus alcançaram “níveis históricos máximos”, conferiu Michael Roberts. Aqui:

[8] O caráter global do fenômeno da “expansão da liquidez” pode ser visto, inclusive para o caso brasileiro. Aqui:

[9] Gráfico no artigo de Michel Roberts: http://www.sinpermiso.info/textos/las-razones-subyacentes-de-la-larga-depresion

[10] A linha branca do gráfico corresponde aos índices da agência “Standard Poors”, a verde a queda no preço no lucro por ações.

[11]Aqui:https://gauchazh.clicrbs.com.br/economia/noticia/2020/03/coronavirus-pega-mundo-com-divida-recorde-e-prazo-curto-ck7k5c2ai000v01p8hiiz1q6d.html

[12] O índice inferior a 50, espécie de limite, indica uma deterioração ou diminuição em relação ao do mês anterior.

[13] Artigo aqui: https://www.imf.org/fr/News/Articles/2020/03/11/blog030920-monetary-and-financial-stability-during-the-coronavirus-outbreak

[14] ] De acordo com L. Morais, em fins de 2019, os dois maiores balanços, os do FED e do BCE, juntos, registravam cerca de US$ 10 trilhões, correspondendo a um equivalente valor de emissão de títulos públicos. Ver o esclarecedor artigo “O estranho mundo das taxas de juros negativas”, aqui:  https://renatorabelo.blog.br/2019/11/12/lecio-morais-o-estranho-mundo-das-taxas-de-juro-negativas/

[15] Relembrando: para o ano de 2019, já alertara a CEPAL: o crescimento econômico regional “é o menor em 70 anos”(-1,1%), com aumento da pobreza (“Valor Econômico”, 29/11/2019).

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