China, 75 anos da grande Revolução: notas críticas sobre um debate interno – elogio a Elias Jabbour
Reflexões críticas sobre o socialismo e a ascensão da China, com base no debate interno do PCdoB e na contribuição teórica de Jabbour
Publicado 01/10/2024 12:46
As notas que seguem são de um debate interno com camaradas do PCdoB, a propósito do texto original do ótimo livro de Elias Jabbour e Alberto Gabrile, “China – o socialismo no século XXI” (Boitempo, 2021). Explicitam considerações de natureza teórica, feitas no sentido de desenhar – “pôr na moldura” – problemas de uma discussão crucial acerca da construção do socialismo. Trata-se de uma pequena contribuição, datada de janeiro de 2021, ipisis verbis, que considero uma homenagem ao camarada Elias Jabbour, o principal intelectual no Brasil a teorizar de maneira avançada, acerca da questão central que passou a indagar o futuro da humanidade: a ascensão vertiginosa da China!
Prezados camaradas:
Infelizmente não consegui acesso à fala, ontem no debate com o Elias Jabbour sobre a China hoje. Dado a importância da discussão, não posso deixar se fazer algumas poucas observações, baseadas nas anotações que fiz ontem, da primeira parte do estudo, e do que consegui ouvir dos camaradas, integral ou parcialmente (Renato, Elias, Júlio, Haroldo, Olival (p), Cristiano (p), Nilson (p) e Ruy (p). Essas notas são preliminares, e embute uma primeira apreciação do grande debate sobre a China hoje e o caráter de suas transformações.
1. As pesquisas do Elias são de grande importância para o debate geral sobre o Socialismo, e notadamente para o PCdoB, como disseram muitos. Registraria que, antes mesmo da nossa presença (com Adalberto) na dissertação de Mestrado de Elias (USP), além de acentuarmos as fontes do financiamento do investimento, e do padrão tecnológico, como questões decisivas para o desenvolvimento em quaisquer circunstâncias, observara que a China deveria ser o foco de total atenção da parte do camarada, em função, claro, da verdadeira epopeia que trilha e realiza a experiência daquele país, desde 1949, em especial a partir de 1978. É muito elogiável a dedicação de Elias.
2. Preliminarmente, para a envergadura dessa tarefa e da questão em pauta, acho que as observações críticas de Olival acerca da nossa política, relações internacionais e compreensão sócio-política da história com a URSS e a China são muito necessárias, visto todo isso no contexto das vicissitudes do MCI e da relativamente curta história do socialismo, junto às limitações do percurso acidentado do comunismo brasileiro; e suas percepções. O fato é que, penso, a tortuosidade por nós vivenciada talvez tenha nos possibilitado contemporaneamente uma predominante capacidade de pensar independentemente “dos outros”, posicionamento que tem como marco a reunião do MCI convocada por Amazonas (1992, artigo “Pela unidade do movimento comunista”) logo após a debacle do Leste e da URSS. De lá para cá, a nossa visão sobre a China, em especial na vasta vivência de Renato e Haroldo (na e) sobre ela, desemboca naturalmente nos esforços de Elias. É assim que vejo, muito resumidamente, as coisas. Outros camaradas, como Carrion e Renildo Souza também se debruçaram de modo sistemático sobre a trajetória chinesa; têm opiniões distintas das de Elias.
3. Como já disse, com insistência, a Elias, considero que entre os pressupostos teóricos básicos em toda a discussão está o conceito – e o desenvolvimento deste – de “Formação Econômico Social”. Por que¿ Porque se trata de uma questão epistemológica essencial se se quer então definir uma “nova” FES, como busca argumentar Elias; e ao que parece, antes mesmo, o italiano Alberto Gabriele (ver: “Socialismo de mercado como uma distinta Formação Econômica-Social interna ao modo de produção”, publicado em inglês em maio de 2012).
Aqui, um parêntese: a coincidência das opiniões, com nuances, como disse na exposição Elias, é o que é central, assim como a ideia de “Economia do Novo Projetamento”, originariamente de Rangel [não conheço ainda seus termos teóricos] vem sendo desenvolvida por Elias, com a inteligência do resgate da formulação rangeliano, devidamente registrado.
Voltando à questão da FES, na minha opinião, ela deve ser categorialmente reconhecida como uma resultante histórica de determinação estrutural, emanada de um modo de produção, isto é, não depende – no sentido de se estabelecer e se enunciar por leis, ou possivelmente princípios, mas não por simples regras – de política econômica, tampouco de estratégia política de Estado ou geopolítica. Noutras palavras, a dinâmica do modo de produção se submete a determinações que, uma vez estabelecido, seu processo de produzir, apropriação e distribuição riquezas, nuclearmente configura um desenvolvimento das forças produtivas típicas, determinadas relações de produção características deste modo de produção, que fazem essa FES “andar com as próprias pernas”. Ou seja, no capitalismo, em particular, a capacidade de autodeterminação do capital apenas se estabelece com a constituição do Departamento I (bens de produção), e essencialmente com máquina que produzem máquinas (Marx).[1] É esta autodeterminação que configura definitivamente o modo de produção capitalista.
As experiências das revoluções socialistas se apropriam das mesmas forças produtivas, e persistem em transformar as relações sociais fundantes e subsequentes. Todas as que ocorreram desde a grande revolução de outubro, ademais, vicejara, em países atrasados ou muito atrasados econômica e culturalmente.
Sendo isto sabido, continua indispensável a leitura reflexiva da “Carta de Engels a Joseph Bloch” (Lisboa, Avante!, M-E, OE, v. 3.) para a formidável (e insuperável) interpretação materialista histórica das relações entre a infra e superestrutura – reduzamos. Que inicia assim, iluminando tudo:
“De acordo com a concepção materialista da história, o elemento determinante finalna história é a produção e reprodução da vida real. Mais do que isso, nem eu e nem Marx jamais afirmamos. Assim, se alguém distorce isto afirmando que o fator econômico é o únicodeterminante, ele transforma esta proposição em algo abstrato, sem sentido e em uma frase vazia”.
E segue imediatamente:
“As condições econômicas são a infraestrutura, a base, mas vários outros vetores da superestrutura (formas políticas da luta de classes e seus resultados, a saber, constituições estabelecidas pela classe vitoriosa após a batalha, etc., formas jurídicas e mesmo os reflexos destas lutas nas cabeças dos participantes, como teorias políticas, jurídicas ou filosóficas, concepções religiosas e seus posteriores desenvolvimentos em sistemas de dogmas) também exercitam sua influência no curso das lutas históricas e, em muitos casos, preponderam na determinação de sua forma (grifos e destaque nossos).
A teorização de Engels, a nosso ver, direta ou indiretamente serve de base aos modernos desenvolvimentos que fizeram com que Luckács, Gramsci e mais recentemente Raymond Williams retomassem a problemática. Seja pela via da “totalidade” (Luckács/[Hegel]), da “hegemonia” (Gramsci), a exemplos, a noção epistemológica de FES não abandonou a ideia de seu “conteúdo” concreto das estruturas materiais das forças produtivas como determinante de última instância – “final – das configurações históricas societais. Ou, a estrutura de cada formação é determinada pelo modo de produção que lhe é inerente na vida social; isto é, as relações ideológicas que estabelecem a superestrutura não são voluntárias, pois não podem ter concretude fora da dependência das condições materiais na vida da sociedade.
Assim, como bem concluiu Terry Eagleton,
“(…) as ideologias devem ser vistas como forças ativamente organizadoras que são psicologicamente ‘válidas’, moldando o terreno no qual os homens e mulheres atuam, lutam e adquirem consciência de suas posições sociais. Em qualquer ‘bloco histórico’, comenta Gramsci, as forças materiais são o ‘conteúdo’ e as ideologias a ‘forma’” (“Ideologia. Uma introdução”, Boitempo, 1992).
Simultaneamente, ressalvou R. Williams acerca de certa interpretação da “totalidade”, desprovida de qualquer conteúdo que poderia ser designado – ou que se designa – de marxista, e pouco exigente – digo eu – com a criação dialética. Conforme esse pensador britânico, a noção de totalidade passa a ser “correta” quando combinada com o conceito marxista de hegemonia. Aliás, diz,
“Uma das consequências inesperadas da crueza do modelo base e superestrutura é a aceitação muito fácil de modelos que parecem ser menos toscos – modelos de totalidade ou de um todo complexo -, mas que excluem os fatos da intenção social, do caráter de classe de uma determinada sociedade e assim por diante. Isso nos lembra do quanto perdemos se abandonarmos por completo a ênfase na superestrutura” (“Cultura e materialismo” Unesp, 2011).
Assim, definida como uma categoria do materialismo histórico, e ao incluir os dois elementos fundamentais das forças produtivas (meios de produção/meios de trabalho+trabalho em si), não há como, mudando as ferramentas de trabalho, não se mude a experiência histórica de produzir, de conhecimento acumulado, hábitos do trabalhador, o que muda as forças produtivas em sua totalidade, por sua feita. Por conseguinte, independendo da forma concreta que assuma tal sociedade, os meios de trabalho sempre foram o elemento determinante desta, sendo os homens o elemento principal.
Com efeito, trata-se de uma consequência teórica hodierna de vários dos textos finais de Engels, considerar que a determinante final do desenvolvimento social está nucleada no caráter e nível do desenvolvimento dos meios de trabalho e especialmente – sobretudo – das ferramentas de trabalho.
Tópicos da discussão
4. Ora, o debate feito por Alberto Gabriele e Elias em “A China e o socialismo do nosso tempo”, e a ‘Nova Economia do Projetamento’ como estágio avançado do socialismo de mercado” começa por considerar o socialismo como “modo de produção”, algo contrário às teorizações de Marx, Engels e Lênin, vigentes teoricamente pelo menos desde a carta de Marx a Weydemeyer (1852), e mais explicitamente nas notas críticas que fez ao “Programa de Gotha e Erfurt” (1875).
É bem sabido que no texto de 1875, Marx, (i) somente numa fase superior da sociedade comunista o estreito horizonte burguês poderá ser plenamente superado; (ii) apenas na primeira fase da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um longo trabalho de parto da sociedade capitalista, o direito nunca pode ultrapassar a forma econômica (de desigualdade de rendimentos pelo mesmo trabalho etc.); (iii) assim, na primeira fase, a cada um segundo seu trabalho; na fase superior, de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”; (iv) por isso, também, é que se deve considerar um período de transformação revolucionária entre a sociedade capitalista e a comunista, “que corresponde também [a] um período político de transição”, (“Crítica ao programa de Gotha”, Boitempo, 2012; todos os grifos nossos).
Sabe-se também que Lênin manteve tal compreensão geral, nomeadamente quando teve que se defrontar com a realidade e tarefas da revolução russa – e seus críticos. Em “O Estado e a revolução”, já antevendo os ciclópicos obstáculos da perspectiva socialista no atraso do país, reafirma plenamente as ideias de Marx, não sem registrar seu sarcasmo habitual aos apegados às “definições ‘inventadas’, escolasticamente imaginadas” (‘socialismo’, ‘comunismo’):
“Mas a diferença científica entre o socialismo e o comunismo é clara. Ao que se costuma chamar de socialismo, Marx clamou de a ‘primeira fase ou fase inferior da sociedade comunista’”. (…) “Em sua primeira fase, em seu primeiro estágio, o comunismo não pode estar em plena maturação econômica, completamente libertado das tradições ou dos vestígios do capitalismo” (Lênin, idem, “Avante!”, OE, vol. 2, 1981).
É notável que, bem mais adiante, em 1922, Tamás Krausz, analisa em detalhes a ideia de Lênin, sob a NEP (Nova Política Econômica), em seu último discurso público, de que a “realização do socialismo não estava ainda na agenda da história”; que o período era de transição, “de criar as precondições histórico-culturais para o socialismo” (“Reconstruindo Lênin. Uma biografia intelectual”, Boitempo, 2017).[2]
Por isso também, um exemplo claro da crítica acima por nós esboçada, pode ser visto na formulação inteiramente – terrivelmente – eclética, de Gabriele, quando ele equipara o conceito de linguística ao de Modo de Produção. Escreve ele:
“Como tal, nosso MP é semântica e conceitualmente adequado aos sistemas astronômicos, biológicos, ecológicos ou linguísticos. A analogia com o último é particularmente útil. Os sistemas linguísticos são estruturas imateriais (grifos nossos) subjacentes que estruturam e organizam as múltiplas linguagens em constante evolução e interação que surgem, se desenvolvem e eventualmente declinam em diferentes locais no espaço e no tempo. De maneira paralela, os MPs também podem ser vistos como estruturas imateriais subjacentes…” (“A China e o socialismo do nosso tempo…”, grifos nossos).
Ora, há muitíssimo o marxismo e sua visão de mundo compreende a relação entre ideologia, signos, consciência e linguagem como uma realidade material; cérebro, mente e mundo estabeleceram uma relação histórica signos/linguagem: a construção de significados são elos semióticos de uma cadeia permanente, portanto material. Ou, como na conhecida crítica de Mikhail Bakhtin,
“Por isso, o papel da língua, como realidade material específica da criação ideológica, não pôde ser justamente apreciado”. (…) Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento da produção ou produto de consumo, mas ao contrário destes ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo” (“Marxismo e filosofa da linguagem”, Hucitec, 2010, 14ª edição).
Gabriele, ao discorrer ainda sobre a natureza dos MPs como sendo “estruturas imateriais subjacentes” dos MPs, faz pior ainda: é regressão epistemológica ao idealismo.
5. As categorias “socialístico”, “socialisticidade”, e mesmo “Meta-modo de produção”, por exemplos, como já observado criticamente (Júlio, Cristiano) são relativizações artificiais que em verdade buscam justificar a ideia de “Nova Formação Econômico-Social”, e contornar a ideia de que não há modo de produção no socialismo, que deveria ser a fase inicial ou inferior do comunismo. Essa discussão, crucial, não é feita por Gabrile. O uso do Marx de “Contribuição à crítica da economia política” (1859), obra seminal; e, num nível bem distinto, usar a visão enrijecida de Althusser (ver: “Sobre a dialética materialista”, 1962; “Aparelhos ideológicos do Estado”, 1970), sobre o conceito de FES, em minha opinião, não dão conta sequer da compreensão da argumentação/atualização teórica de Engels, acima referida.
O que não significa dizer que esta não seja objeto de investigação e pesquisas como vem sendo feito no caso da experiência chinesa; assim como não quer dizer que o termo “orientação socialista”, por exemplo, não seja uma denominação clara, e não à toa já usado pela experiência vietnamita, ao menos desde 1995.
Insistindo, não se trata de formalismo, tampouco de secundarizar a investigação sobre as condições reais da transição ao socialismo e as formas que a história das revoluções e das lutas de classes se desenvolveram hodiernamente. Trata-se sim do exame da identificação – do conteúdo e – do conceito, o que não invalida a busca da hipótese teórica. A ciência propõe-nos enunciados verificáveis, mas não verdades imutáveis. Lembro sempre do ensinamento retido mais recentemente de Gaston-Granger, que alerta:
“(…) uma teoria acerca dos fatos humanos está constantemente ameaçada, se não tomarmos cuidado com isso, de se transformar numa ideologia, substituindo os conceitos pelos mitos e as discrições pelas prescrições” (“A ciência e as ciências”, Unesp, 1994).
Claro, dissera antes: “(…) uma teoria não se estabelece apenas baseada nas regras de descrição dos fenômenos. Ela também propõe hipóteses ou princípios gerais…” (idem).
6. Concordo com observações de Júlio sobre a enunciação de uma espécie de volta ao valor como valor de uso, retrocesso ricardiano expresso no caráter quantitativo do valor-trabalho (a quantidade do trabalho determinando a demanda pela mercadoria X); o que se contradiz flagrantemente com o apelo de Elias sobre o uso do princípio da demanda efetiva em Keynes/Kalecki, levado como política econômica pelo governo chinês, pois a demanda efetiva significa em última instância a realização da mais-valia, ou seja, a valorização do valor, notadamente a advinda para a compra de máquinas, equipamentos e instalações. Sem dúvidas, assim como a “socialização do investimento” (elemento da teoria keynesiana), a utilização regular da demanda efetiva na China demonstra os objetivos claros do regime chinês em manter elevados a renda nacional e o pleno emprego.
Acrescento que é falsa, a tese da “transformação do valor em preços”, como deixa a entender a superada formulação de Piero Sraffa, no geral observada meritoriamente por Gabriele, uma vez que a produção de mais-valia, para Marx, pressupõe a abstração de sistema “aberto”, e não um esquema de perequação das taxas de lucros num modelo (Cf. L. Belluzzo, “Valor e capitalismo”, Unicamp, 1998. 3ª edição).
Também concordo com as observações de Haroldo, quando chamou a atenção para a confusão entre economia socialista de mercado, e economia voltada para o mercado como uma diretriz estratégica, como deu a entender Elias, por mais de uma vez (isto não ficou claro). Assim como a opinião de Haroldo de que é indispensável a referência aos estudiosos chineses, o que tenho repetido a Elias. Pouco importa que sejam “oficiais” tal ou qual formulação, sabe-se distingui-las; assim como é subestimação dos pesquisadores chineses.
De outra parte, os três estudos seminais de Luis Fernandes – de muito longe, as melhores pesquisas do Brasil -, acerca da experiência socialista da URSS constituem leituras e lições indispensáveis para qualquer debate sobre o socialismo. Destacadamente, assinalo, a) as ideias de Eugeni Preobrazhenski, sobre o debate da “lei da acumulação primitiva do socialismo”, questão encontrada em “A nova econômica” (esp. Cap, 2, Paz e Terra. 1979), autor sequer citado no estudo de Gabriele e Elias;[3] b) especialmente os capítulos 8 e 9, de “A revolução bipolar: a gênese e derrocada dos socialismo soviético” (Anita Garibaldi/PUC RIO, 2017), onde, particularmente a enganosa ideia de “socialismo desenvolvido” desvela, ao revés, que a chamada “era da estagnação” soviética se assentava em limitações histórico-estruturais daquele “modelo” de socialismo – e da vicissitudes de sua própria construção.
7. A experiência mais recente da China socialista é alvissareira. A assimilação “ex-post”, digamos, do padrão tecnológico contemporâneo mais avançado foi fenômeno destacado por Domenico Losurdo, ainda no final dos anos 1990, naquele país. Mais: a China persegue hoje os postos mais avançados no domínio da inteligência artificial. Portanto, a “encruzilhada da inovação”, termos de L. Fernandes para caracterizar um impasse central e uma razão da debacle da experiência soviética, está sendo contornada, na presente etapa do desenvolvimento econômico global. Enquanto que a temporalidade de seus traços históricos é incontornável. Pois compreender seu estágio de transição não pode se dar à revelia do que a prudente experiência da culta e liderança chinesa denomina de “etapa primária do socialismo”.
E lembrar sempre que etapa primária do “socialismo com características chinesas” é uma etapa de longa transição, onde, sabidamente, relações capitalistas convivem com relações socialistas, e luta ideológica entre “dois caminhos” pode levar o país a um estágio mais avançado da construção socialista; outro que poderá promover a restauração capitalista e a hegemonia do domínio da propriedade privada sobre a estatal e pública.
Abraços a todos,
Barroso
[1] A propósito, o magnífico historiador marxista Pierre Villar considera que, (i) “a implantação” do caráter rural da vida econômica e social do feudalismo europeu ocorre entre os séculos IV e X; (ii) que o grande comércio só se generalizou a partir de século XI, com crescimento da produção local destinada ao mercado; a progressiva substituição das “oficinas confinadas” de trabalho servil aos senhores, pela fabricação de ferramentas pelas oficinas urbanas; (iii) que a crise geral do feudalismo nos séculos XIV e XV é sucedida pela “primeira etapa de formação do capitalismo”, marcadamente caracterizada pelo “avanço das forças produtivas, invenções e descobrimentos” entre os séculos XV-XVI” (“A transição do feudalismo ao capitalismo”, 1963/1971).
[2] Krausz assinala a crítica de Lênin à “compreensão equivocada” de Bukharin em seu livro “A economia do período de transição”, que diferenciava capitalismo e socialismo, mas não tratava da concepção concreta de Lênin sobre capitalismo de Estado. “Mas… – sublinhara antes Lênin – nem um único livro foi escrito sobre o capitalismo de Estado sob o comunismo” (idem, cap. 8, “A teoria do socialismo: possibilidade ou utopia?”).
[3] Escrito depois, “El equilíbrio económico del sistema de la URSS”, é ensaio importante para a visão do autor para o “funcionamento” da lei e da NEP, esta exaustivamente examinada na obra de Fernandes. Em “Metodologia de la planificacion. Aportaciones soviéticas 1924-30”, Comunicacion, Madrid, 1972. Ver também a “tese dos dois reguladores”, consequência da lei da acumulação socialista primitiva, no verbete “Preobrajenski…”, “Dicionário do pensamento marxista”, ed. Tom Bottomore, Zahar, 1988.