Catolicismo popular e memórias dos ‘Dias Grandes’ no sertão
Tenho como patrimônios culturais familiares, que ainda hoje são marcantes em minha vida de sertaneja, a gastronomia religiosa do “Dia do Nascimento” (Natal) e a dos “Dias Grandes” (nome da Semana Santa no sertão), onde pontificam também minhas lembranças da queimação ou malhação do Judas no Sábado de Aleluia.
Publicado 04/04/2017 10:30
Havia uma “meninada judeira” em Graça Aranha, onde fazer Judas com cabeça de mamão verde e olhinhos de peteca (bola de gude) era uma linda brincadeira de criança! “Fazendo Judas, aprendi ou descobri que sabia versejar, lá pelos 8 anos de idade”, pois testamento de Judas dos legítimos é escrito em versos! Ouvir a leitura do testamento de um Judas oficial do lugar é um doce delírio, pois há sempre algo picante a decifrar, sobretudo insinuações sobre “cornices” e teúdas e manteúdas de uns e outros…
A Semana Santa, segundo as leis do catolicismo popular que comandavam o viver em minha família, era um tempo de silêncio, jejum e mil e uma proibições, mas das comidas ainda hoje sinto o odor. Portanto, foi com um misto de raiva e ternura que, num jantar natalino na casa da amiga feminista Maria Elvira, em Belo Horizonte, ouvi de uma das convidadas uma história que me fez pesquisar muito sobre o bacalhau e depois escrever o artigo “Sua Excelência, o bacalhau, na culinária da Semana Santa”.
Naquele lauto banquete, ouvi falar pela primeira vez sobre a bicha (fila) das indulgências para comer carne na Semana Santa em Portugal! Não tenho certeza, mas acho que a contadora foi Beth Pimenta, fundadora da Água de Cheiro. Ela estava em Portugal na Semana Santa e ficou espantada com as filas enormes de pessoas com sacolinhas de carne em volta das igrejas católicas. Ao indagar o que era aquilo, recebeu como resposta que, para comer carne, que ficava baratíssima naquele período, era preciso que ela fosse abençoada pelo padre!
Evidentemente, percebi na hora que a “bicha da carne” colocava a nu o logro cultural e religioso no qual fui criada: na Quaresma, era seguido à risca o preceito de não comer carne na Quarta-Feira de Cinzas; em nenhuma sexta-feira naqueles 40 dias, e em nenhum dia da Semana Santa porque ela era dedicada a guardar contritamente a dor sofrida por Jesus Cristo, com rezação, mortificação, jejum e silêncio!
“Desde fim do século XV, começo do XVI, o Vaticano, em reconhecimento ao sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, decretou que os cristãos não poderiam consumir carnes quentes durante a Quaresma. Dizem que o Vaticano era proprietário da maior frota bacalhoeira – caravelas para a pesca do bacalhau que levavam os dóris, barcos a remo, nos quais os pescadores (bacalhoeiros) se lançavam ao mar para a pesca. Visando maximizar seus lucros, o Vaticano proibiu o consumo de carne durante a Quaresma, quando então as vendas de bacalhau explodiram. Já era um alimento apreciado nas camadas populares europeias, sobretudo portuguesas, por ser nutritivo e barato”. (“Sua Excelência, o bacalhau, na culinária da Semana Santa”, O TEMPO, 19.4.011).
Dizia vovó Maria: “Se Deus inventou comida melhor do que bacalhau, guardou só para ele”. Foi seu amor pelo bacalhau que tornou sua descendência amante incondicional da culinária bacalhoeira, e eu vivo quebrando a cabeça tentando reproduzir suas receitas! Já recuperei o bacalhau à espanhola, o arroz de toucinho com bacalhau, mas não consigo fazer suas misteriosas trouxinhas de couve com bacalhau no borralho, que iam ao borralho enroladas em folhas de bananeira, já que desconhecíamos o papel-alumínio!
Vovó era uma sábia sem igual.