Bira, um cidadão que dormia na rua
O texto a seguir foi divulgado pela primeira vez na revista “Carta Capital” de julho de 2008, sob o título de “Ubirajara calcula”. Acho que vale a pena vê-lo de novo 15 anos depois por sua verdade
Publicado 21/04/2023 10:15 | Editado 21/04/2023 10:50
Quando surgiram as primeiras notícias, a maioria das pessoas não acreditou. Um morador de rua, um mendigo, passar no concurso do Banco do Brasil?! Seria o mesmo que acreditar em contos da carochinha. No entanto, Ubirajara Gomes da Silva existe, é de carne e osso, mais ossos que carne, pelo menos até passar no concurso. Com 1,74 m de altura, chegou a pesar algo em torno de 50 quilos.
Ele é um jovem de 27 anos, mulato, com um olhar zen, uma postura zen, uma fala zen, difícil às vezes de se ouvir. Tem o segundo grau, que conseguiu em exames do supletivo. Mas é diplomado em matéria de sofrer. Filho de uma garçonete com um ex-policial, que não o reconheceu como filho. Sobre essas coisas, digamos, menos materiais, sobre isso ele não gosta de falar. Dói mais que a fome.
– Essa prova que eu fiz agora foi até no Dia dos Pais, 12 de agosto, ele diz.
– Você já chorou muito?
– Já. Já chorei tanto, que eu não tenho mais lágrimas.
– Por quê?
– Falta de mãe, de família. De pai. (Longo silêncio.)
Então Bira saiu de casa para ser criado pela avó. E passou a levar surras. Então ele fugiu para as ruas, aos 15 anos de idade. Quando tinha 17, soube que sua mãe falecera, soube apenas, mas não pôde ir ao velório. Nos 12 anos em que morou nas ruas, dos 15 aos 27 de idade, ele conta que certa vez ficou 30 dias sem alimento.
– Como é que alguém consegue passar 30 dias sem comer? pergunto.
– Passando… Eu passei 30 dias sem comer, mas tomando água, comendo muito pouco, 30 dias sem me alimentar. Eu vivia dormindo, era muito sonolento, minha pressão caía, e o pessoal falava, “ele só quer dormir. É a vida que ele quer”. O pessoal me chamava de preguiçoso, de doido…
– E você se acostumou a passar fome?
– Me acostumei assim, não é? Não é que eu me acostumei. Me acostumei porque não tinha. Mas não me acostumei de achar aquilo uma coisa legal… me acostumei por causa de não ter mesmo, de não ter de onde ganhar.
– Como é que você conseguia comer?
– É interessante esse negócio de comida, porque eu pegava 1 real, todos os dias, ia lá no Mercado da Madalena e comprava uma fatia pequenininha de bolo de rolo e um copo de coca. Isso pela manhã. À tarde, normalmente eu não comia.
– E como é que você conseguia estudar com fome?
– Eu me alimentava muito de glicose, de coisas doces. Café muito doce. Não sei se você sabe, não é?, quando você come glicose, alguma coisa doce, ajuda assim a raciocinar. Por exemplo, tem muita gente que quando vai fazer prova, leva uma barrinha de chocolate.
Esse quadro seria desculpa para toda a falta de ação, para todas as desculpas de aceitar um estado miserável. Para quem nunca foi ao limite, para quem vive dentro de condições mais confortáveis, o agir desse rapaz é algo absurdo, inverossímil. Talvez o mais simples seria dizer que ele teve e tem um norte, um objetivo. Ainda que não fosse para onde queria por meio de carro, bicicleta ou ônibus. Andarilho, Bira já chegou a caminhar 27 quilômetros, a pé, com fome, para fazer uma prova de concurso. Suas pernas eram veículo, a vontade era motor.
Quem reduz uma pessoa à sua vida orgânica, tem todo o direito de se escandalizar. Alguma coisa não bate, os incrédulos dizem. Por isso, em obediência ao senso comum, pergunto:
– Você estudou pro concurso do Banco do Brasil como?
– Três dias antes.
– Mas o que você vinha estudando antes?
– Português, matemática. Assim, eu fui com a bagagem que eu tinha. Eu não estudei muito não.
– E como é que você estudava português e matemática?
– Eu faço assim, ó. Eu até brinco. Eu não sou exemplo de estudo não. Porque eu sou um cara que eu pego assim: 10 regras de matemática, boto lá e fico estudando. Aí jogo 10 regras de português…. uma coisa que não tem nada a ver. Quando eu estou achando uma coisa muito chata, ou está muito difícil, eu pego, pulo pra outra coisa.
– E onde você pega essas 10 regras de português?
– Tem um programa, um site muito bom chamado “Só Português”, tem outro, “Só Matemática”. Tem os testes do PCI, Concursos, que são muito bons. Ali tem testes, provas, aí eu saio fazendo.
Então a gente sai de uma dificuldade e entra em outra. Programa, site, como assim? Como pode um sem-teto, um cara que não tem o que comer, acessar o maravilhoso mundo da web? A isso o senhor Bira responde:
– Se eu pegasse 5 reais, eu me perguntava: o que eu vou fazer com estes 5? Se eu ia tomar café, os documentos que eu ia precisar tirar. Por exemplo, eu ia tomar café, que custa 1 real, e sobravam 4. Ia entrar na Internet, que eu ia precisar, já virou mania. Às vezes eu tenho acesso algumas horas lá no Cebrae, que é gratuito. Quando eu não podia, eu ia nesses lugares gratuitos. Quando eu pagava internet, eu ficava sem almoço, ou sem tirar uma carteira de estudante…
Assim esclarecido, sabedor de que a vontade é a sua ferramenta, voltamos:
– Seu amigo Carlos Eduardo chama a atenção para o fato de que entre 19.000 candidatos no Recife, apenas 171 não levaram ponto de corte em Conhecimento Bancário. E como é que você sabia Conhecimento Bancário sem ter apostila?
– Eu gosto muito de ler sobre banco, a parte de economia dos jornais, assim, eu procurava saber algumas coisas, tipo commodities, taxa selic, esse negócio, ouro…
– Tudo a ver com a sua realidade …
– Não, nada a ver. Obrigado pela ironia.
Peço-lhe desculpa. Bira é zen, mas responde pronto. Assim como se diz, no meio do povo, que “a dor ensina a parir”, ele pensa rápido e reage. Quando não tinha casa, ele se abrigava na porta de uma farmácia, de madrugada, encolhido em um batente de porta de 1 metro de comprimento. E porque a dor é mestra eficiente, ele procurou conhecimento com os instrumentos que a sua necessidade criou. Ele não tem gramática – formal, em livro -, mas fala com boa sintaxe, léxico e prosódia. Não tem livro didático de matemática, mas não errou uma só questão de juros na prova. Ele, que era o próprio “não tem”, o que fez? Criou a sua didática, a sua gramática, a sua matemática, assim como um faminto acha o caminho do pão.
– Eu deixei de estudar em escola em 1995, quando saí de casa. Em 2001 voltei para a sala de aula.
Pra comer, sabemos. Voltou para a sala de aula para ter direito à merenda da noite. Mas na hora procuramos saber o método que usou para o Concurso. E lhe digo:
– Matemática, como todo conhecimento, é uma construção. Como você pode pegar aqui e ali? No concurso do Banco do Brasil houve questões de juros compostos.
– Ah, juros eu sei bem. Tanto que eu não errei uma só questão de juros.
– E como é que você fez isso sem livro?
– Ah, é porque livro… eu lhe digo, eu sou autodidata e sou aquele cara que aprende fazendo… tem até uma expressão, como é chamada? Aprende fazendo.
– Mas fazendo a partir de que exemplos, a partir de que didática?
– Depende. Eu pergunto… Eu conheço um cara que está fazendo engenharia. Ele se aborreceu comigo, porque ele estava tentando me ensinar um problema, e eu fiz os cálculos sem fazer cálculos. Mentalmente. Ele ficou com muita raiva. Quase quebra a cadeira na minha cabeça. Ele me disse: “Eu faço engenharia esse tempo todinho, eu passo duas folhas para dar um resultado zero. Você pega e faz de cabeça?”.
Natural. Quem não tem, faz da própria cabeça um algoritmo e um caderno. O seu improvisado professor disso não sabia. E até conhecer Bira, eu também não. Estamos todos envenenados pelos métodos formais, e julgamos que a mente se pauta pela ordem do ABC. Se o homem é o ser que cria, Ubirajara Gomes da Silva é filho desse homem. Ele, que vem sendo apontado como a exceção, é apenas um ser como qualquer um de nós, quando não se curva.
– Quem é você?
– Sou um cara teimoso, persistente…. na medida do possível, sagaz, eu acho. A gente tenta, tenta, tenta, tem objetivo.
– Se você tivesse de enviar uma palavra para as pessoas que se encontram em uma situação difícil, na rua, o que você diria?
– Lutem.
Dizer mais o quê? Ubirajara Gomes da Silva é um homem.