Arte de resistência à ditadura no Brasil
Até hoje, o desconhecimento do Brasil sobre artes e artistas do Nordeste é que é digno de nota. Os do “Norte que vêm”, como os saudava Alceu Amoroso Lima, só se tornam nacionais quando recebem a chancela dos jornais e salões do Sudeste.
Publicado 16/05/2024 19:22 | Editado 16/05/2024 19:23
No texto “60 obras mostram a beleza da resistência à ditadura militar”, Carolina Maria Ruy escreve que “pouco antes do golpe completar 60 anos, o André Cintra apresentou a ideia de criar um grupo para selecionar 60 obras produzidas durante a ditadura. Aceitei na hora. E assim nos juntamos a outros quatro jornalistas, Andressa Schpallir, Fabio Ramalho, Susana Buzeli e Val Gomes, e conseguimos apoio do Centro de Memória Sindical, da Força Sindical, da UGT e da CTB”.
O resultado do trabalho coletivo é bom, necessário e redescobre artes e artistas que não se calaram frente ao terror de Estado no Brasil. Inspirado pela pesquisa, ouso fazer acréscimos de alguns artistas e obras durante a ditadura.
De passagem, observo que até hoje o desconhecimento do Brasil sobre artes e artistas do Nordeste é que é digno de nota. Os do “Norte que vêm”, como os saudava Alceu Amoroso Lima, só se tornam nacionais quando recebem a chancela dos jornais e salões do Sudeste. Tome-se o exemplo escandaloso de Ruy Castro na coluna “O crítico nacional”, publicada em 9 de maio deste ano.
Ali, sem qualquer dúvida ou reflexão, ele escreve que o crítico de cinema Moniz Vianna, falecido em 2009, “em três décadas de crítica desde 1946, e sempre no Correio da Manhã, do Rio, falou de mais filmes do que todos os colegas americanos e franceses multiplicados uns pelos outros, e com mais propriedade. De Lumière a Woody Allen, sua cultura de cinema era total. Seus artigos às vezes ocupavam duas colunas de alto abaixo do jornal —um filme por dia, todos os dias!—, com opiniões que lhe valeram tanto brigas quanto admirações”.
Ora, Ruy Castro não sabe, e parece não querer saber, que no Recife existiu uma estrela no céu dos filmes cujo nome era Celso Marconi. O nosso crítico de cinema foi, de longe, o crítico mais longevo no mundo. Começou no jornalismo na década de 1950, quando escreveu para o Folha do Povo, o Jornal Pequeno e o Diário de Pernambuco. Depois, na edição nordestina do Última Hora. No golpe de 1964, foi detido quatro meses e voltou a atuar na imprensa no Jornal do Commercio. Celso Marconi foi o mais longevo do mundo, não somente pelo tempo que viveu, de 1930 a 2024, mas pela atividade ininterrupta, que ele continuou, fora dos jornais, no portal Vermelho, até a sua morte. Mas no seu trabalho o que mais se ressalta não é a quantidade. É a qualidade, como sobre ele falou o grande Nelson Pereira dos Santos:
“O que seria dos filmes, aqueles que ainda vivem dentro de nós, referências insubstituíveis de momentos gloriosos de nossas vidas, sem o registro crítico da época, representada por cineastas/escritores do porte de Celso Marconi? Os textos reunidos em livro documentam o requintado sabor que Celso Marconi sempre emprestava na apreciação de cada filme, em especial quando se tratava de filme brasileiro. A leitura deste livro equivale a uma viagem na memória, em busca dos filmes, brasileiros e do mundo inteiro”
Mas publicou no Recife, logo, está fora do cenário nacional, apesar da formação que deu a gerações de cineastas pernambucanos de valor internacional nestes dias.
Do cinema, vou até Abelardo da Hora. O que dizer desse artista? Escultor, desenhista, mestre de outros artistas que formou em aulas e lições. De memória, sem consulta, lembro Francisco Brennand, Samico, Wellington Virgolino, Corbiniano, Zé Cláudio, Guita Charifker…. Mas era comunista e do Recife. Foi preso mais de 70 vezes. Preso político na ditadura – foi detido no golpe-, chegou a ser questionado se ganhara muito dinheiro com as obras que estão em praças e parques do Recife. “Eu disse ao coronel Ibiapina: ‘aquilo tudinho foi presente que dei à prefeitura’. Ele perguntou qual era a mensagem oculta na Torre de Iluminação, que tinha 12 metros de altura, feita com peças que se moviam com o vento. Eu disse que aquilo era o vento e disse ‘só se o senhor quiser mandar prender o vento’. Ele não gostou muito, não”,
E por falar nas artes de resistência, é impossível esquecer Paulo Bruscky e Daniel Santiago, artistas de vanguarda. Entre outras intervenções e obras, criaram a “Arte Desclassificada”, uma série que publicavam nos jornais, por meio de anúncios pagos, que defendiam situações absurdas ou impossíveis. Artearonimbo (1974), por exemplo, publicado no jornal Diário de Pernambuco, convocava “um químico, um meteorologista ou qualquer pessoa capaz de colorir uma nuvem”.
Notem que nada falei sobre o mundial Paulo Freire, que foi expulso do Brasil, por sua obra revolucionária na educação. Nem do fecundo escritor e teatrólogo Hermilo Borba Filho (que recomendou a publicação do meu conto “Pensão Paraíso” no jornal Opinião, no qual fazia parte do Conselho Editorial). Da sua beleza, deixai que lhes diga, para pouco dizer:
Hermilo Borba Filho é autor de uma tetralogia que era lida pelos estudantes na ditadura como uma libertação do moralismo burguês, por sua carga erótica e verdadeira: de título geral “Um cavalheiro da segunda decadência”, ele publicou os volumes “Margem das lembranças”, “A porteira do mundo”, “O cavalo da noite” e “Deus no pasto”, de 1966 a 1972. Esses livros, se republicados hoje, seriam uma renovação de vida e erotismo no Brasil.
Tanto ainda a falar sobre Hermilo, sobre o Teatro Popular do Nordeste, que ele fundou e era uma festa de teatro e música popular no Recife, até 1975; sobre a sua influência na obra teatral de Ariano Suassuna; sobre o seu “Fisionomia e espírito do mamulengo”, uma obra fértil de estudo sobre mamulengos (teatro de fantoches), publicada em 1966. Melhor parar por aqui. O entusiasmo é grande, mas o texto já vai extenso.