“Agricultura familiar”, C&T e os modismos
A década de 1990 foi simplesmente terrível no que cerne à continuação de um salto civilizacional iniciado com a Revolução Russa de 1917. Achar que as esquerdas passaram imunes a isto é um ato de irresponsabilidade vil.
Publicado 03/12/2009 19:59
Desde então, na medida em que uma estratégia de caráter socializante transformou-se em algo de longa estratégia, demandando verdadeiros processos de acumulação de forças, os modismos de variadas ordens foram tomando espaço. O relativismo tomou o lugar da objetividade histórica na base da teoria do conhecimento. A especialização, como contraposição ao todo dialético, se esgueira num processo de fragmentação da ciência. A necessidade de periodização substituiu uma necessária visão de processo histórico. A intolerância intelectual tornou-se uma prática, um modus operandi no debate (ou mercado?) de idéias.
Assim, desde absurdos como “agricultura familiar” até todo um manancial de incompreensões acerca da necessidade de inovação tecnológica na periferia ganha força. Nem Gramsci (a moda do momento, por vezes uma boa moda, por vezes uma má moda) escapa do superficialismo. Os modismos negam a centralidade da economia política e da necessidade de se conhecer as formas de funcionamento das leis econômicas. Acredita-se que se pode fazer política sem ter a mínima noção de como funcionam as já citadas leis econômicas. Por sua vez, os modismos negam a estratégia reduzindo o debate a questões periféricas com conteúdo fortemente a-histórico.
Falarei por aqui de pelo menos duas modas, a da agricultura familiar e a da “tecnologia”.
“Agricultura familiar” e índices de produtividade
“Um Outro Mundo é Possível”, eis o lema do chamado Fórum Social Mundial. Desde já, esclareço que não tenho nada contra esta universal forma de manifestação, uma forma de acumular forças, unificar um ou outro discurso. Mas para por aí. “Um Outro Mundo Possível” (como se o problema não fosse a superação de certa ordem de coisas e como se a saída fosse a destruição do que está construído, em favor de tecnologia bugre), negando o capitalismo e negando a técnica não vai nos levar a lugar algum. É a velha máxima de Ignácio Rangel que, ao comentar as políticas econômicas da década de 1980, concluiu que o país era “um bando de cegos, guiados por cegos no rumo do abismo”. Nesse ponto, ainda bem que sou guiado pelo PCdoB.
Schumpeter, um economista burguês nada vulgar, alertava que uma das grandes qualidades de Marx era a não negação do papel civilizacional do capitalismo. Aliás, a “civilização” que para Marx e Engels nasce sob a forma da produção em série e social é a etapa última da “pré-história da humanidade”. Enquanto isso no Brasil, a conversa anticientífica que separa a grande produção da agricultura familiar ganha força como se a agricultura não fosse um elo da divisão social do trabalho.
Parcela grandiosa da esquerda combate as linhas de crédito do governo federal ao dito “agronegócio”, sem enxergar que nossa agricultura está na alça de mira do imperialismo. Para que tudo isso serve? Para, nas palavras de Lênin, encetar o “triunfo da grande produção” como ante-sala da grande produção socializada e tecnificada? Não, claro que não. É o discurso do atraso financiado pelas fundações Ford e Rockefeler preconizando as vantagens comparativas e o retorno a um passado que não deve voltar. Criticar a concentração de terras em nosso país, apesar de angariar elogios públicos e homilias, deve ser vista de forma científica, pois, quando na verdade tínhamos de comemorar, pois é mais fácil socializar as propriedades de 100 produtores rurais que coletivizar milhões de pequenos produtores pulverizados.
Depois do monopólio só é possível o socialismo.
Outra moda é criticar os atuais índices de produtividade para a agricultura. Boa moda, ótimo. Mas por que não colocar em questão os índices utilizados para julgar uma propriedade como “familiar”? Atualmente toda e qualquer propriedade (independente, por exemplo, de fatores naturais) com menos de 40 hectares é tida como “familiar”. Noventa por cento da esquerda brasileira defende de pés juntos que não houve feudalismo no Brasil e, mesmo assim, utilizam o parâmetro “terra”, “tamanho da propriedade” para classificar alguma propriedade. Ora, se o Brasil transitou diretamente do escravismo ao feudalismo (quais as leis da Economia Política que baseiam uma transição deste tipo?), como julgar uma propriedade pelo seu tamanho e não pela “composição orgânica do capital”? Assim, fica fácil passar vista ao trabalho quase escravo praticado por propriedades (com menos de 40 hectares) com altíssima composição orgânica do capital somente para receber dinheiro do Pronaf.
A direção do esforço principal (1)
No que tange ao modismo em torno da agricultura familiar, qual o esforço principal a ser perseguido? Acho em primeiro lugar devemos nos esforçar em sofisticar uma coisa chamada estratégia. Estratégia significa algo elaborado em consonância com a história, com a história do desenvolvimento da técnica, da história da dinâmica das classes sociais no Brasil e no mundo. Pressupõe uma grande dose de preconceito favorável à “verdade” em detrimento da justiça. E o principal: não ter medo desta verdade, nem que ela seja instrumento de isolamento intelectual. Para isso, a estratégia deve ser seguida de uma tática que nos blinde do isolamento. Ser um pensador Robin Wood, um “livre-pensador”, desprovido de grandes compromissos políticos e de determinada estratégia e tática, pode ser tão letal quanto o modismo da “agricultura familiar”.
A amplitude se exerce com política para isso. Portanto, ao combater a moda da “agricultura familiar”, a sofisticação do pensamento estratégico pode nos levar, a título de ilustração, em pensar no papel estratégico para o Brasil da transposição do rio São Francisco transformando o Nordeste brasileiro no maior complexo agroindustrial do mundo.
Enfim, se a industrialização é produto da transferência de atividades ora praticadas no seio da fazenda para as cidades (logo, segundo Lênin, a agricultura vira uma cultura altamente especializada), não podemos vislumbrar nenhuma consequência prática para aos problemas sociais gerados pelas crises de superpopulação e superprodução inerentes a agricultura fora dos marcos de uma ampla política de desenvolvimento de novos campos de acumulação nas cidades (por exemplo, estacionamentos subterrâneos).
A questão da tecnologia
A tecnologia transformou-se na “panacéia do novo tempo”. Inovemos, pois assim tudo está resolvido. Como se esta história de inovação tecnológica fosse uma “brincadeira”, que não necessita de um verdadeiro exército voltado a este fim; com um verdadeiro exército muito bem pago, com objetivos claros e com um amparo financeiro quase infinito. É como se fosse, também, uma brincadeira que, como tudo na vida, não devesse ser enfrentada com pleno conhecimento da história. Assim, sem história e com muito voluntarismo chega-se à conclusão que um simples aumento no valor das bolsas de estudos significa algo como a ponta do iceberg de uma verdadeira tecnologia de inovação em nosso país. Falar que não existe política, séria, alguma de inovação no Brasil pode ser a carruagem de fogo para o isolamento e a defenestração. Mas como dizia Hegel, “a verdade sempre aparece”. As pessoas não podem ser punidas simplesmente por terem capacidade de pensar.
Mas, o Brasil não tem política de inovação, pois política (seja ela pública ou não) pressupõe capacidade de financiar, planejar e capacidade de impor pressupostos básicos a um fim e a principal delas é uma política cambial séria, como base de uma política industrial, que também não existe. A coisa deve ir além do discurso e da assinatura de leis disto e vontade daquilo.
Pois bem, o Brasil percorreu em 50 anos (1930-1980) o caminho que a Europa demorou 600. Construímos nosso caminho importando quinquilharia de tecnologia, exemplificada nos parafusos de determinada máquina (importada e desmontada) que nos tornou capaz de construir indústrias ancilares seja ao Departamento 1 da economia, seja ao setor de bens de consumo. Atingimos a um nível de desenvolvimento das forças produtivas cuja superação só pode ocorrer ou nos marcos de uma revolução socialista ou no encetamento da fusão do capital bancário com o capital industrial. O surgimento de um variado sistema de bancos nacionais e mercado de valores seriam as bases à capacitação financeira para que nosso país continuasse com saltos espetaculares de qualidade. Ao lado desta dita fusão da indústria com o banco está, no mesmo grau de importância, o planejamento do comércio exterior.
Nos marcos de um mundo onde a ciência e a tecnologia fundem-se como uma força produtiva quase única, tornando-se um caro fator de produção e condição objetiva e confirmação da lei objetiva da tendência da queda da margem de lucro, a única solução para os países da periferia como o nosso reside em superar os marcos da importação de quinquilharias tecnológicas, para a compra de pacotes fechados de tecnologia nova. Por exemplo, o que a China faz reside muito mais numa clara capacidade de comprar tais tecnologias e praticar engenharia reversa, inovando nesse caso a partir da descoberta do funcionamento de tais mecanismos (já prontos).
O centro do problema não está em buscar reversamente, partindo de uma outra política de boa intenção, fazer um alarde tremendo sobre uma tal “política de inovação” que não passa de algo em total não correspondência com as leis econômicas do modo de produção capitalista e das leis econômicas que norteiam o comércio internacional.
A direção do esforço principal (2)
Qual a direção principal para clarear o debate sobre a C & T? A solução do problema reside em não conceber a ciência e a tecnologia como um fim em si mesmo. Assim como para a relação entre campo e cidade e indústria e agricultura, a problemática da C &T deve ser encarada partindo da parábola marxiana sobre a anatomia do macaco e do homem, segundo a qual “o que está encima ilumina o que está abaixo”. A questão é elucidada pelo total controle por parte do Estado dos instrumentos cruciais do processo de acumulação (crédito, juros, câmbio e sistema financeiro). Na medida em que nosso país pratica uma política econômica centrada na acumulação de superávits primários, sob a égide um câmbio determinado pelo mercado e de uma política de juros que arrocha a demanda, fica difícil e se torna até um abuso de inteligência alheia falar na existência de uma “política de inovação” em nosso país. Podem existir esforços louváveis. Não os nego, mas sem grandes consequências. Afinal, irresponsavelmente, comemora-se o fato de uma potência como o Brasil crescer apenas 1% este ano e no ano que vem entre 4% e 5%..
Quando se fala de uma estratégia centrada no aparelhamento de um capitalismo de Estado no Brasil, fala-se, necessariamente, na expressão superestrutural da fusão do capital industrial com o capital bancário no Brasil, gerando um capitalismo financeiro brasileiro nos dotando de autonomia financeira suficiente para podemos começar a falar em autonomia tecnológica, o que significa transitarmos de uma era onde era suficiente a importação de quinquilharias a uma condição financeira que nos condicione momentos de crise capitalista como a que vivemos para a compra de pacotes fechados e novas tecnologias. Isto serve para aqueles que acreditam que podemos falar em Estado Nacional moderno e desenvolvimento abarcando somente questões da superestrutura, sem passar perto de problemas puramente de base econômicas.
Enfim, há a questão que envolve planejamento do comércio exterior (venho batendo em ferro frio, diga-se de passagem)., Além de ser central à superação da anarquia da produção no âmbito do comércio internacional e neutralizar o núcleo da lei do desenvolvimento desigual e combinado, o planejamento do comércio exterior envolve diretamente a questão tecnológica. Afinal, sendo a tecnologia nova e novíssima propriedade do centro do sistema, a melhor forma de se atrair esse tipo de empresa com alta densidade tecnológica está na execução de uma política cambial atraente à instalação de unidades produtivas com esta característica. Eis a política, por exemplo, de “inovação” chinesa: prática de uma política cambial onde um dólar custa quase sete yuanes.
Não é de se espantar que, nos últimos anos, conta-se nos dedos o número de empresas com alta densidade tecnológica que se instalaram no Brasil, enquanto pode-se contar mais de 200 que se instalaram na China entre 2004 e 2009. Isto porque um dos propalados grandes trunfos do governo brasileiro (a política de ciência e tecnologia) previa instalar pelo menos 100 empresas deste tipo em nosso país entre 2004 e 2009.
Aparência não é essência, meus caros.
Fechando, por enquanto
Os modismos, em última instância, são a negação da estratégia. O combate aos modismos, por seu turno, demanda leitura de conjuntura, além de apego ao concreto e à história. Não podemos utilizar argumentos (e seria irresponsável) como os expostos na questão da C & T, para sairmos ao combate ao que está aí, notadamente no governo Lula. Afinal, e independente de seus limites, o governo Lula é a condição sine qua non à uma superação desta conjuntura Os fatos devem ser analisados sob a luz da compreensão de uma conjuntura onde a correlação de forças é capaz de blindar qualquer tentativa de mudanças essenciais do cerne da política econômica. È preciso luta política, mas com racionalidade e inteligência. Sem rendições à conjuntura, mas com teoria revolucionária sofisticada em mente. Com grande dose de combatividade intelectual, mas principalmente utilizando-se de uma das categorias da dialética chamada de “mediação”. Senão, a coisa vira “pugilismo” em vez de luta política.
O marxismo pode ser tanto um instrumento poderoso de análise e transformação quanto uma coisa praticada (marxismo-leninismo “conseqüente?) por certos figurões que já passaram dos limites da paciência e racionalidade, baseando-se em chavões e em palavras de ordem capazes somente de seduzir uma juventude fora do mercado de trabalho. Seu véu de arrogância intelectual e política que serve mais como mecanismo de defesa ante um conteúdo oco e pobre.
“A vida é verde”, já dizia Goethe.
Coragem intelectual e mediação política: eis um bom começo para o combate aos modismos e à negação da estratégia.