“Adeus à Linguagem”, do lado oposto

Com acidez e inquietação, cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard reflete em seu último filme sobre os descaminhos gerados pelo neoliberalismo

Como sempre, assistir a um filme de Jean-Luc Godard é estar em meio a um tiroteio. Chovem bombas por todos os lados. O máximo que se pode fazer é cobrir os ouvidos e ver a claridade provocada pelas sucessivas explosões. Depois, no intervalo entre um e outro do combate, se abrigar no primeiro lugar que surgir. E só então descortinar um dos combatentes imprecando entre as chamas contra o imperialismo, os burgueses e o capital, culpando-os pela espoliação e a carnificina.

Se positivamente já era assim em “A Chinesa” (1967), onde um grupo de estudantes maoístas se entrincheira numa sala para escrever panfletos e organizar sua distribuição, neste seu último filme, “Adeus Linguagem”, Godard (03/12/1930), radicaliza ainda mais. O faz mesclando reflexões político-ideológicas sobre os descaminhos engendrados pelo neoliberalismo e entrechos matizando as conflituosas relações do jovem casal Eveigh/Marcus e a destruição da natureza.

Algumas de suas reflexões podem ser tão desconcertantes quanto as de “Filme Socialismo” (2010), no qual transforma o cruzeiro de milionários pelo Mediterrâneo em metáfora do planeta à deriva. Agora ele, como narrador, reflete sobre a crise gerada pelo sistema (pressupõe-se neoliberal). E traça um paralelo entre a ascensão de Adolf Hitler (1889/1945) e o reerguer da Alemanha nos anos 30 com a posição deste país hoje, líder da Comunidade Europeia. Sua conclusão é de que a derrota de Hitler na II Guerra Mundial, em 1945, se transformou numa vitória no século 21.

Neoliberalismo igual a nazismo

O que significa para ele, nas entrelinhas, comparar o neoliberalismo ao nazismo, dada à mão de ferro com que o governo alemão conduz a política econômica da União Europeia (EU), sedimentando o ressurgimento do imperialismo alemão (Vide o caso da Grécia). Para sustentar não só estas ideias, dentre outras, Godard encadeia uma profusão de imagens de combates da II Guerra Mundial, de campos de extermínio, de bombas explodindo e muitas chamas. E denuncia que esta política mata milhões.

Sua metralhadora continua a girar nos entrechos do casal Eveigh/Marcus, em permanente discussão, sexo inconcluso, afetos negados, presos em diminutos quartos, sem projeções de futuro. Estão juntos e não estão. Ela sempre mais incisiva domina as ações, enquanto ele apenas reage. Falam em se separar e continuam. São protótipos dos pares brotados do neoliberalismo. Entre eles, segundo reflexão godardiana, está o cão Roxey Miéville, ente da natureza, a lutar por atenção.

Através dele e do casal inter-étnico, emerge à discussão sobre o equilíbrio homem/produção/consumo/natureza. Em belas sequências, Godard discute a interação animal/natureza, com Roxy mantendo a harmonia, enquanto o homem no sistema capitalista tende a degradar o meio ambiente, a ponto de colocar a existência de ambos em risco. Mas o animal depende da historicidade do homem para garantir sua simbologia.

O cão se comunica mais que o homem

O mais curioso neste “Adeus Linguagem”, porquanto Veigh (Héloíse Godet) e Marcus (Kamei Abdelli) quanto mais falem menos se comunicam, é o silêncio vindo de Roxy. Por meio de suas reações, olhares, sumidas pela floresta, caminhada solerte pela casa e o deitar no sofá, ele transmite o necessário para ser atendido. Daí as imagens de TV, de Veigh lendo, de ela criança com o pai trocando livros na praça, não levar à comunicação interpessoal. Inclusve a disputa pela atenção: imagens, sons, mídia, propaganda incessante, tornou-se ilusória.

Como se vê, Godard pensa e filma dialeticamente, situando-se historicamente, recurso natural em sua filmografia. A incomunicabilidade vista em “Week-End à Francesa” (1967) retorna em 3D, em sua fase ainda embrionária no gênero drama. Mesmo assim, ele procura variar os enquadramentos, mantendo o close, o plano aproximado e o grande plano, numa montagem bem estruturada. Dá para vivenciar os movimentos de Veigh e do cão e as mutações da natureza de perto, com grande nitidez.

Desta forma, Godard foge à experiência do 3D apenas. Mantém sua estética e temas que o inquietam. Entretanto, o espectador percebe haver um nexo nos entrechos do irrequieto casal Veigh/Marcus, sem haver uma narrativa em si, e a maneira como o momento histórico o influencia. Pode- se fazer um paralelo com o pouco visto “Claro” (1975), em que Glauber Rocha (1939/1981), aproxima a colonialista Itália ao Terceiro Mundo. Seu documentário prenuncia o que ela acabou se transformando no século 21.

Olhares sobre o controle mundial

Também o malaio Tsai Ming-Liang traz uma abordagem da crise do Ocidente, sob o ponto de vista da incomunicabilidade e da perda do ser, pelas imposições do sistema capitalista, que ajuda a complementar as preocupações de Godard. São filmes aparentemente dispares, mas sobre culturas e civilizações hoje mergulhadas em crises sócio-político-econômicas urdidas pela multinacionalização do capital-financeiro, sob o controle político do bloco das sete grandes potencias, lideradas pelos EUA.

Adeus Linguagem. “Adieu Au Langage”. Drama. França. 2014. 70 minutos. Fotografia: Fabrice Aragno. Direção/roteiro/edição: Jean Luc-Godard. Elenco: Héloïse Godet, Kamel Abdelli, Richard Chevalier.


(*) Festival de Cannes 2014: Prêmio Especial do Júri.

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