“Abolição”: a farsa centenária (IV)
A partir do século XVIII, o movimento dos quilombos tomou vulto para, ao atingir a segunda metade do século seguinte, estar caracterizado como uma verdadeira insurreição negra
Publicado 01/03/2024 14:58

“Se os poderosos cada vez mais escravizam, os oprimidos lutam por liberdade. É a maior esperança de libertação… nem tudo está perdido.”
(Solano Trindade)
A escravidão brasileira foi uma das mais ferozes de que se tem conhecimento, até mesmo nas regiões em que não exerceu tão grande influência. Em sua Viagem ao Rio Grande do Sul, Arséne Isabelle conta horrorizado o que foi o “ano da graça de 1834”: “Sabeis como esses senhores, tão superiores, tratavam seus escravos? Como tratamos nossos cães!” Joaquim Nabuco, em Um Estadista do Império, afirma que o regime vivia como que num “estado de sítio permanente”. A pena de açoites só foi abolida formalmente pela lei de 16 de outubro de 1886. Mesmo assim, segundo Nabuco, o Estado acobertava todas as violências. “Todos os homens de governo, entre nós, todos os depositários de uma parcela que fosse de autoridade, durante o período da escravidão, concorreram, direta ou indiretamente, para sustentar uma tirania pérfida, inquisitorial, torturante”.
Esta é a verdadeira história da escravidão brasileira: “Cavalos, burros e bois estavam dispensados da tirania do tronco, dos bolos da palmatória, do suplício das máscaras de Flandres, das torturantes prisões em solitárias soturnas, da terrível agonia dos longos jejuns, da ignomínia dos grilhões e de todas as outras formas de desumanos e humilhantes castigos físicos e morais”. (Luiz Luna, em O Negro na Luta Contra a Escravidão). A falsa idéia da escravidão brasileira resulta não só da deformação deliberada de fatos históricos, mas também das notícias que certos viajantes, pagos pelo governo brasileiro, espalharam pela Europa. Até o “grande” Ruy Barbosa, quando Ministro da Fazenda do governo provisório, contribuiu para isso: mandou queimar todos os documentos referentes à escravidão existentes em arquivos de repartições, sob o pretexto de “eliminar do solo da pátria a escravidão – a instituição funestíssima que por tantos anos paralisou o desenvolvimento da sociedade(…)” E, conforme Luiz Luna, “o tratamento dispensado pela quase totalidade dos senhores aos escravos era indigno até das mais grosseiras mentalidades. Esses senhores praticavam contra os cativos os mais torpes crimes e as mais cruéis brutalidades”.
Na sua Sociologia da Revolução Brasileira, Pessoa de Morais diz que “por toda a parte, a história brasileira é um rosário de rebeliões e atitudes radicais de escravos rebelados”. Como o sistema econômico repousava exclusivamente no trabalho escravo, os senhores de engenho e fazendeiros, bem como os estancieiros do Rio Grande do Sul e os ervateiros do Paraná, não poupavam castigos e se estendiam até a prática de crimes os mais hediondos, a fim de manter “o despotismo da autoridade e receber obediência cega”. Os escravos eram a única e exclusiva fonte de renda – e também para os cofres públicos. Daí a intransigência do governo e particulares “contra os anseios de libertação dos escravos, o ódio de morte ao negro fujão e as impiedosas atrocidades na punição aos quilombos e aos insurrectos”. Ora, se o sistema se caracterizou como um “verdadeiro exercício de violência” por parte das elites dominantes, como poderia o negro cativo reagir “lambendo o pé de seus algozes?” Evidentemente, para crer na sua “docilidade” é necessário pressupor que o negro cativo fosse nada mais que um animal; jamais um ser humano. O fato é que, contrariando a vontade de muitos, o cativo nunca se submeteu pacificamente à escravidão. Reagia violentamente com as condições de que dispunha. Individual ou isoladamente foram muitos os “crimes” de agressão e homicídio cometidos contra senhores, feitores, “sinhazinhas” e capitães-de-mato, além das fugas constantes. Nas atitudes coletivas surgem as revoltas e os numerosíssimos quilombos que a história registra. Segundo Luiz Luna (sic), “fugiam, em grupos ou individualmente, homens, mulheres e crianças, internando-se nos matos para formar quilombos. As fugas tornaram-se tão numerosas que levaram a Coroa a expedir ordens régias e alvarás punitivos, mandando mutilar parte do corpo dos negros fujões, marcar com ferro em brasa a letra F em lugar visível, cortar orelhas, além dos suplícios da gargalheira, do tronco, das surras” e de outros castigos talvez mais requintados.
Durante todo o período da escravidão os negros cativos reagiram. E a partir do século XVIII, dizem alguns historiadores, o movimento dos quilombos tomou vulto para, ao atingir a segunda metade do século seguinte, estar caracterizado como uma verdadeira insurreição negra. Na verdade o Pai Tomas brasileiro, a exemplo do “father Thomas” americano, jamais existiu.
(Publicado originalmente no jornal O Paraná, de Curitiba, em 4 de agosto de 1988)