“Abolição”: a farsa centenária (III)

Servil ou rebelde?

Um dos estereótipos mais alardeados pela “ideologia branca” é o do “negro” bonzinho, pacato, servil. A esta imagem ainda se apegam muitos “brancos” intolerantes – esses “idiotas da inobjetividade” – para confirmar seus argumentos de que o “negro” é definitivamente inferior. E infelizmente a maioria dos negros brasileiros de hoje também desconhece a história dos escravos, seus antepassados, aceitando essa mesma imagem do escravo servil e subserviente. Ainda existem muitos negros falando com convicção sobre “as virtudes da Mãe Preta ou a ternura contemplativa que se inspira na bondade do Pai João”. Da mesma forma, vemos até mesmo advogados negros dizendo tais bobagens: “os sinhozinhos e sinhazinhas foram acalentadas pelas mães negras”. Ora são as confidências sentimentais entre as sinhazinhas e a negrinha de recados, ora a fidelidade do homem negro pelo seu senhor, capaz de arriscar a própria vida em seu benefício. Nada mais falso, mentiroso e ridículo. Confunde-se a exceção com a regra geral, o que faz com que as interpretações sentimentais e literárias suplantem a verdade histórica. Diversos historiadores já demonstraram que o negro cativo jamais se submeteu pacifica e mansamente à escravidão. Pelo contrário, lutou ininterruptamente contra a sua condição de cativo.

A imagem de “escravo fiel” e de “senhor bondoso”, tentando mostrar a escravidão brasileira como “humana” (imagens da ama confidente da sinhazinha, do “moleque” e outras) é mera deturpação deliberada dos fatos históricos. A norma geral do sistema sempre foi o comportamento inconformista do escravo e a ação cruel e brutal do senhor. A escravatura no Brasil foi um verdadeiro exercício de violência.

O historiador Décio Freitas, estudioso dos movimentos de cativos no Brasil e autor do livro “A Guerra dos Escravos”, que trata da luta dos negros palmarinos, chegou a conclusões interessantes. Segundo ele, “nada mais falso e anti-histórico do que dizer que a inferioridade biológica e cultural do negro seja evidenciada pela sua aceitação passiva da escravidão. A verdade é que o negro resistiu sempre à escravidão: no momento em que foi capturado, durante a travessia atlântica e, mais que tudo, quando escravo nas Américas. Para obrigá-lo a trabalhar, foi necessário submetê-lo a um verdadeiro sistema de terror, e isso que na África ele era um agricultor laborioso e inventivo. Nem assim o negro suportou passivamente a escravidão”.

Os “idiotas da inobjetividade”, evidentemente, procuram outros argumentos para demonstrar a sua superioridade natural em relação aos “negros”. Sugerem que a comprovação está no fato de os negros, durante quase quatro séculos, terem se deixado capturar em seu próprio continente. Para o historiador Décio Freitas, tal argumento ignora que em Roma – a sociedade escravista por excelência da antiguidade clássica – os que constituíam a massa de escravos não eram negros mas germânicos, gauleses, ibéricos, eslavos, gregos, judeus (…). Naturalmente para os romanos esses povos eram definitivamente inferiores.

Publicado originalmente em:
Correio de Notícias, Curitiba – 13.05.1988

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