“Abolição”: a farsa centenária (II) – 1888-1988

Tentam apagar da memória brasileira a presença marcante do negro, assim como fez Rui Barbosa quando queimou nossos arquivos históricos. Tudo indica, entretanto, que a ideologia do branqueamento ainda não foi derrotada

"Passatempos depois do jantar", uma litografia de 1839 que evidencia a grande divisão entre senhor e servo, é obra do artista francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848)

A ideologia do branqueamento

O mulato surge como uma figura importante na constituição do universo das relações sociais brasileiras. No início, era o produto híbrido de duas categorias sociais e “raciais” extremas: o senhor branco e o escravo negro. O mulato é, segundo Octávio Ianni, em Raças e Classes Sociais no Brasil, “um produto dialético, a negação do escravo e do senhor e, em consequência, um dos agentes de destruição da escravatura (…). No seio do processo de miscigenação, com seus efeitos cumulativos reflexos, o pardo é, por sua vez, um agente desagregador”. Em síntese, “o mulato carrega com seu hibridismo uma denúncia permanente ao regime”. Não somente é, por si mesmo, “uma das mais puras evidências das contradições intrínsecas ao regime como é também agente direto da abolição”. Durante a escravidão, debateu-se sempre entre duas alternativas: “Branquear-se” ainda mais, ou então lutar pela liberdade dos ainda cativos. Livre, passou a ser considerado “insolente” ou “produto inferior” das duas “raças”. Pelo seu “branqueamento” enfrenta hoje menos dificuldades do que o “negro”, embora a ideologia racial branca também o iguale aos membros da camada inferior da sociedade. Há 17 anos, assisti em Porto Alegre uma conferência do professor norte-americano Thomas Skidmore, autor do livro Brasil, de Getúlio a Castelo Branco, na qual dizia que “a crise do liberalismo clássico, mais ou menos de 1860 a 1920, trouxe como conseqüência a crise da “ideologia racial”. Segundo ele, a preocupação dos liberais brasileiros “era saber como seria possível uma sociedade liberal com negros e mulatos, porque era muito difícil encontrar um branco no Brasil” (em princípios do século XVIII, a população total do Brasil era avaliada em 300 mil pessoas, das quais apenas 100 mil “brancos”.

Para o professor Skidmore, a ideologia do branqueamento, no sentido de assimilar negros e mulatos, surgiu de algumas teorias estrangeiras que afirmavam que “o problema do Brasil era a mestiçagem”. Assim, acentuou, “o branqueamento da população brasileira foi adotado como política necessária, influenciando inclusive as leis de imigração do governo provisório (1890), que proibiu a imigração de populações da Ásia ou da África”. Mas a partir de 1910 começaram a surgir reações contra a ideologia do branqueamento. Manuel Bonfim afirmou que a raça nada tinha a ver com o atraso do Brasil; ele devia-se à influência dos países colonizadores. Alberto Torres rejeitou o racismo científico, pela falta de diferença absoluta entre as chamadas raças, explicando o atraso brasileiro pela falta de organização nacional”.

Tentam apagar da memória brasileira a presença marcante do negro, assim como fez Rui Barbosa quando queimou nossos arquivos históricos. Tudo indica, entretanto, que a ideologia do branqueamento ainda não foi derrotada. O bom observador certamente já terá notado, de algum tempo para cá, a insidiosa e nojenta campanha de “valorização” da mulata,que não é vista como pessoa humana, mas sim como um mero objeto sexual. É que dentro do funcionamento daquela ideologia a cor preta ainda é inconveniente.

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É justamente na questão do “casamento” entre pessoas de cor diferente que as questões referentes ao preconceito se aguçam. Racionalmente, eles não admitiriam o fato de que são racistas, mas isso já é um negócio arraigado, um condicionamento social. O fato é que, apesar de toda a “propaganda”, o “homem branco” só se casaria com uma mulata em circunstâncias muito especiais. Isso porque, em virtude de ser a cor um critério de identificação das camadas sociais da sociedade, estaria arriscando seu prestígio social, que deve ser mantido a qualquer custo na sociedade competitiva em que ele luta “para subir na vida”.

Em “Cultura e Situação Racial no Brasil”, Thales de Azevedo observou que a “discriminação racial é especialmente presente na classe dominante”, embora “nem por isso deixe de haver pessoas de cor naquela esfera”. O grupo da classe alta define-se racialmente como “branco”. Mas como a branquidade é basicamente um conceito social, caboclos (mulatos disfarçados) e mesmo mulatos indisfarçáveis são, excepcionalmente, aceitos nos círculos profissionais e recreativos daquela classe. A ideologia do branqueamento, portanto, ainda é uma realidade, mesmo após um século de abolição.

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