A Terra Fria da multifacetada opressão
O filme “Terra Fria” (2005) aborda a violência contra a mulher, que se manifesta cotidianamente no Brasil, pela perspectiva marxista de mercadoria dentro de um sistema patriarcal. Análise contém spoiler
Publicado 07/06/2021 14:18
Terra Fria mostra como, mesmo no século XXI, as mulheres são tratadas com profunda discriminação e preconceito pelo fato de serem mulheres. Embora ele registre uma experiência do mundo do trabalho nos Estados Unidos, também pode servir como retrato da realidade brasileira. O filme se passa no estado americano de Minnesota, em 1975, ocasião em que contrataram pela primeira vez mulheres para trabalhar numa mina de ferro. Nesse contexto, a trama de Terra Fria narra a vida de Josephine “Josey” Aimes (Charlize Theron), uma mulher que, após sofrer violência doméstica, retorna a sua cidade natal. Como mãe solo, para garantir o sustento dos seus dois filhos, aceita emprego na mina de ferro.
O filme escancara o sofrimento das mulheres, expostas a situações vexatórias, tratadas em condição inferior à dos homens. Algumas cenas, como o momento em que Josey tenta pela primeira vez denunciar o assédio moral de seu chefe, mostra o plano de superioridade imposto pelos homens, menosprezando as mulheres ou pintando-as como loucas. As mulheres sofrem assédio adicional e até abuso em retaliação às denúncias, com boatos sobre suas vidas particulares.
Em Terra Fria, a expressão do que se entende por mercadoria em Marx apresenta-se em toda a sua inteireza, uma vez que a mercadoria não se resume ao produto do trabalho, o minério, mas inclui as próprias mulheres, que são triplamente exploradas, pelo trabalho em si, pelo fato de serem pertencentes à classe operária e por serem mulheres. Nessa perspectiva, já metaforizava Marx, as mercadorias parecem ter vida própria, como que enfeitiçadas, mágicas, e despertam de sua existência inanimada para o mundo das coisas vivas, influenciando a humanidade como bem entendem. A alienação tira o gênero humano do domínio sobre as coisas produzidas pelos/as trabalhadores/as e inverte a relação, colocando-os sob seu domínio.
A película é fértil em indicar reflexões sobre a história da opressão sobre as mulheres. Ou seja, aponta caminhos interpretativos a partir da premissa de inclusão à luz da história das mulheres, mas também a dos homens, das relações entre homens e mulheres, dos homens entre si e igualmente das mulheres entre si, além de propiciar campo de análise das desigualdades e das hierarquias sociais. Heleieth Saffioti salienta que as relações de gênero estão imbricadas com as relações de poder, as quais hierarquizam homens e mulheres ao longo da história. Nesse sentido, Saffioti atualiza e coloca a centralidade dessa discussão, destacando que as mulheres estiveram hierarquicamente inferiores aos homens nos milênios da história. A riqueza da contribuição é justamente destacar que o sistema patriarcal influi intensamente no funcionamento das instâncias de poder, à base de densa dose de ideologia, para perpetuar a desigualdade de poder entre homens e mulheres.
Nítido, em Terra Fria, como as práticas sociais diferem segundo o gênero das pessoas nelas envolvidas, pois as mulheres estão historicamente em condição de inferioridade e submissão forçada. Essa hierarquia organiza todas as esferas da vida social, passando pela família e pela organização do mundo do trabalho. No filme, a opressão, a exploração e a violência contra a mulher estão evidentes no local de trabalho, nas ruas, nos bares, nas escolas e dentro de suas próprias casas.
Josey mortifica-se diante da incompreensão do filho adolescente, que ouve nas ruas e na escola os comentários preconceituosos sobre a mãe. Ela enfrenta o próprio pai, que já não aceitara sua gravidez precoce, resultado de um estupro anos antes e agora se sente ofendido pela filha ter aceitado um emprego onde ele próprio trabalha. Enfrenta o silêncio da mãe, a violência do ex-marido, o medo das próprias trabalhadoras de perder o emprego caso resolvam aderir à ação judicial contra a empresa que Josey resolveu iniciar. A protagonista, como milhões de mulheres mundo afora, corporifica a opressão de gênero e de classe.
Quantos casos não se registram de ameaças e de estupros todos os dias no Brasil? Em maio deste ano de 2021, para ficar num exemplo recente, a ex-deputada federal Manuela D’Ávila denunciou ameaças de estupro contra sua filha Laura, de apenas 5 anos, e de morte contra ela própria. Ao longo dos anos de sua notável trajetória política de defesa de direitos humanos e das mulheres, Manu é alvo constante desse tipo de agressões vis.
A 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra o aumento da violência contra as mulheres e meninas. A cada oito minutos ocorre um estupro no Brasil. Os homicídios dolosos de mulheres e os feminicídios tiveram crescimento no primeiro semestre de 2020 em comparação com o mesmo período do ano passado. A violência de gênero atinge centenas de mulheres diariamente de diversas formas: assédio, violência doméstica, feminicídio, cultura do estupro, machismo, entre outros. Ela perpetua-se na sociedade e constrói um mundo cada vez mais perigoso para o gênero feminino.
Lembramos também das marcas da violência psicológica, evidenciadas no filme em tela, que não deixa cicatrizes físicas no corpo, mas marcam o psiquismo. Josie foi violada no direito sobre o seu corpo pelo professor no ensino médio. “Parecia estar gostando”, segundo um colega que presenciou o abuso e não fez nada. Existe uma construção social histórica de certo modo implícita, velada, de pertencimento do corpo da mulher, fêmea, ao mando do poder do macho. O estudo de Menecucci (2009) revela que o estupro é uma tragédia humana, com suas cicatrizes além do corpo físico, deixando o sentimento de que a vítima nunca irá se limpar, o desejo da troca de seu corpo por outro, indicando uma articulação com o significado simbólico dessa sujeira.
Muitas vítimas, se engravidam, desejam o mais rápido possível o aborto. Para a autora, são sentimentos de vergonha, de culpa e de medo que tomam lugar na vida das mulheres, apagando a noção de serem sujeitos de direitos. Explicitam que as cicatrizes ficam cravadas no corpo dessas mulheres, na sua sexualidade, no afeto, nas relações de trabalho e por toda a vida. Violências a que mulheres são secularmente expostas, em especial a violência sexual e, quando narrados tais acontecimentos, a impressão é de rompimento, não só com o silêncio, mas também com a cumplicidade que a sociedade e o Estado têm tido ao longo da história com os agressores.
Há, no entanto, uma negação desta realidade, pois como alerta Walter Benjamin, recordar nos torna mais dignos e menos insensíveis às barbáries dos seres humanos ao longo do processo histórico, recordar não nos permite esquecer e nos oferece o futuro como perspectiva. A violência sexual revela o complexo contexto de poder, que marca as relações sociais entre os sexos com consequências gravíssimas para as mulheres, e poucos sabem lidar com ela, muitos se omitem.
Josey, além da violência cotidiana, ainda sofre diversos tipos de assédio sexual. Como se observa no filme, desde o exame de gravidez para ser admitida na empresa, há várias provocações e desrespeito até a tentativa de estupro na mesma empresa. As justificativas criadas para encobrir os multifacetados tipos de violência trazem à memória de quem assiste uma sensação de horror e de pobreza de consciência, uma vez que tudo pode ser feito em desrespeito às mulheres. Para o assédio sexual ou mesmo para o estupro, apresenta-se o argumento da insinuação feminina, ou mesmo seu suposto histórico de comportamento promíscuo. Além da hostilidade reativa à presença de mulheres trabalhando em uma mina, a resposta de que aquele não é o lugar delas, de que estão roubando postos dos homens.
Já o assédio moral, mais uma faceta da violência presente em Terra Fria, reveste-se de complexidade, cujo conceito, segundo Barreto, é “polissêmico” e faz parte de um fenômeno mais amplo – a violência genérica. Este tipo de violência é praticado por superiores hierárquicos. No entanto, ele se revela no filme em todos as relações, pelos chefes, pelos colegas, seja através de piadas vexatórias, de manifestações abusivas e outras, como as pichações com fezes nas paredes do banheiro, duplicando a violência na medida em que a limpeza cabia às mulheres da empresa.
Em uma conjuntura profundamente adversa aos direitos historicamente conquistados pelos(as) trabalhadores(as), de ameaças e de aumento do desemprego, as manifestações de violência se multiplicaram, particularmente em nosso país em que a combinação perigosa de inação e irregularidades por parte da gestão Bolsonaro tem sido a principal responsável pela rápida disseminação da COVID-19 e pelo cenário de caos no país.
Filme: Terra Fria (North Country), inspirado em fatos reais, narrados no livro de Clara Bingham e Laura Gansler “Class Action: the story of Lois Jenson and the landmark case that changed sexual harassment law” (“Ação Trabalhista: a história de Lois Jenson e o caso referencial que mudou a lei sobre assédio sexual” – 2002). (Alerta de spoiler)
Gênero: drama / Ano: 2005
Direção: Niki Caro (de “A encantadora de baleias”)
Elenco: Charlize Theron, Jeremy Renner, Frances McDormand
Referências:
BARRETO, Margarida. Assédio moral: trabalho, doenças e morte. Seminário Compreendendo o Assédio Moral no Ambiente de Trabalho 1234567890 (2010 : São Paulo).
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, 7. ed., 1994.
SAFFIOTI, H.I.B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, A.O. ; BRUSCHINI, C. (Orgs.) Uma Questão de gênero. São Paulo; Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.
https://www.dw.com/pt-br/estudo-atribui-fracasso-do-brasil-na-pandemia-ao-governo-federal/a-57219075 – acesso realizado em 05 de junho de 2021.