A resistência de Clara

Aos 65 anos, viúva, ela resiste em deixar seu apartamento, sendo a última residente de um prédio cobiçado pela especulação imobiliária

Filme "Aquarius" | Foto: Divulgação

Em 2016, o protesto do qual participei dentro de uma das salas do Shopping Cristal onde era exibido o filme “Aquarius” galvanizou boa parte da plateia com “Fora Temer! Fora Temer! Fora Temer!” – o coro ressoou como uma manifestação forte e emocionada, em plena Curitiba, a da “República da LavaJato”. A repulsa contra o governo de Temer, foi repetido em inúmeras exibições em todo o país. O que tinha a ver o protesto com o filme protagonizado por Sonia Braga?

Nada e tudo. Vivia-se naquele ano o pós-golpe que derrubou a presidenta Dilma, entronizando o oportunista e golpista Michel Temer no governo, que já exercitava suas garras com a nefasta reforma (anti)trabalhista. Assim como no filme a personagem de Sonia Braga protesta e resiste contra o assédio capitalista imobiliário sobre ela. As ruas da capital paranaense eram palmilhadas por milhares de manifestantes em passeatas contestando o retrocesso real em curso sob o governo de Temer. E também no 69o. Festival de Cannes, onde o filme do diretor Kleber Mendonça Filho foi exibido, ele e boa parte do elenco de “Aquarius” levantaram cartazes de protesto contra o golpe do impeachment de Dilma – “O mundo não pode aceitar a ilegalidade desse governo”, “Um golpe aconteceu no Brasil”, “54.501.118 de votos foram queimados!”, “O Brasil não é mais uma democracia” e “Vamos resistir”.  Isso estimulou os brados de protesto em salas de cinema Brasil afora.

Elenco do filme Aquarius no Festival de Cannes com placas em protesto ao golpe contra a presidenta Dilma I Foto: Valery Hache/AFP

Desde então, vinha desejando tratar de “Aquarius”, considerando sua atualidade e sua  simbologia para os/as que não se submetem a ordem vigente. Agora, na distância do tempo, tento modestamente fazê-lo.

Aquarius é o nome do prédio situado diante da linda praia de Boa Viagem, no Recife, que, no trabalho de Kleber Mendonça Filho (mesmo cineasta de Bacurau), tem como protagonista central Clara (Sonia Braga), jornalista aposentada e escritora. Aos 65 anos, viúva, ela resiste em deixar seu apartamento, sendo a última residente de um prédio cobiçado pela especulação imobiliária. Clara viveu grande parte de sua vida nesse local, criou filhos e filhas, fez amizades, e por isso rejeita firmemente as propostas da construtora.

A nostalgia e as memórias de Clara, simultâneas com a obstinada contraposição às  investidas do grande capital imobiliário, perpassam o filme. Essa nostalgia vem assinalada na trilha sonora por músicas como “Sentimental”, de Altemar Dutra, “Quintal do Vizinho”, de Roberto Carlos, “Hoje”, de Taiguara, e inclusive o rock de sucesso (de 1980) da banda inglesa Queen, “Another one bites the dust”.

A incorporadora imobiliária Bonfim – representada por um jovem no melhor estilo yuppie, inescrupuloso, formado nos EUA – recorre a atitudes diversas para convencer Clara a vender o último bastião do Aquarius: chantagens, puxadas de tapete, ameaças. Mas a obstinada Clara, que já havia vencido um câncer de mama em sua juventude, mostra na maturidade que a nova doença da especulação imobiliária não a vencerá, mesmo que sozinha enfrente a todos que tentam demovê-la da difícil jornada de viver em um espaço que é seu.

Filme “Aquarius” I Foto: Divulgação

A temática central do filme nos chama a pensar sobre as cidades brasileiras e o quanto o poder do mercado imobiliário, a sanha expansionista e ávida do capital por mais lucro, tentam pintar a protagonista como pessoa mesquinha que não quer deixar seu apartamento mesmo diante das ofertas sedutoras da construtora Bonfim.

Clara resiste ao poder do capital, rejeita todas as ofertas, dá a volta por cima de todas as artimanhas empregadas pela construtora. A resistência de Clara é algo incompreensível para os detentores do capital. A memória afetiva da protagonista não pode ser entendida ou medida pelo capitalista.

No modo capitalista de produção, praticamente tudo pode ser convertido em mercadoria. Também a forma de pensar e organizar a vida social domina a forma de estruturação social dos territórios urbanos como bens vendáveis, mercantiliza-se a vida e tenta-se capturar de modo interesseiro a emoção das pessoas e menosprezar a vida humana.

Clara representa muitas mulheres da atualidade, que criaram os filhos, se realizaram em suas profissões, conquistaram um espaço e não aceitam imposições de normas e comportamentos. Milhares de pessoas que vivem no mundo urbano são pressionadas cotidianamente a deixarem suas moradias pela ganância capitalista. O que dizer do drama de milhões de famílias brasileiras, particularmente as periféricas, que vivem a incerteza de não ter garantido o direito constitucional à cidade? Pensamos que o direito à cidade cabe a todos e a todas em participar de processos de produção e fruição do espaço urbano. O Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257, de 10 de julho de 2001) define o direito à cidade como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte, aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer para as presentes e futuras gerações. É necessário que esse direito seja pensado como uma filosofia, uma posição política, que deve se sobrepor à lógica mercadejante.

O filme Aquarius enfatiza a necessidade de não se submeter, de enfrentar o pensamento capitalista hegemônico, de continuar a resistência no exemplo da mulher Clara. Acende luzes no sentido de que se lute sempre para romper as amarras conservadoras, autoritárias, patriarcais e patrimonialistas históricas que continuam assolando o Brasil.

Aquarius
Gênero: Drama
País: Brasil/França
Ano: 2016
Duração: 142 minutos
Roteiro/direção: Kleber Mendonça Filho
Elenco: Sonia Braga. Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Humberto Carrão, Fernando Teixeira

Referências:

https://www.brasildefato.com.br/2020/10/10/direito-a-cidade-e-negado-a-muitos-brasileiros-como-ter-acesso-a-ele

https://plataformaurbana.cepal.org/en/node/167

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