A rendição no acordo Mercosul-União Europeia
Pode levar anos a ratificação do Acordo de Associação Estratégica entre Mercosul —Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, com a Venezuela suspensa — e uma União Europeia de 28 estados membros —inclusive parte dos mais industrializados— mas o compromisso com a sua assinatura, recém-anunciado, reforçou a análise da condição dos países latino-americanos no sistema internacional. Agricultores europeus também preveem impactos negativos e resistem, o que igualmente cobra exame.
Publicado 15/07/2019 11:37
As negociações do Acordo de Associação Estratégica entre Mercosul e UE, lançadas há 20 anos, tomaram novo impulso em 2016, com uma nova troca de ofertas. Em 2018, as componentes política e de cooperação foram acordadas, focando em temas como a migração, a economia digital, pesquisa e educação, responsabilidade empresarial e social, proteção ambiental, governação dos oceanos e a luta contra o terrorismo, a lavagem de dinheiro e os crimes cibernéticos.
Na semana passada, foi acordado o novo quadro comercial, com o anúncio do compromisso das partes em concluir o acordo para criar o que se anuncia como uma das maiores áreas de comércio livre do mundo. Como se tem ressaltado, Mercosul e UE somam 770 milhões de habitantes e cerca de R$ 437 bilhões (100 bilhões de euros) em comércio de bens e de serviços —números similares aos apontados na cúpula de 2010 entre líderes europeus e sul-americanos, onde se discutiu a retomada das negociações suspensas em 2004, com a política agrícola europeia como um dos principais obstáculos. Logo, as tratativas estancaram novamente.
O acordo enfrentava resistência de alguns países europeus devido à concorrência na agropecuária, enquanto Argentina e Brasil outrora resistiam devido à preocupação com os setores mais sensíveis da indústria nacional, mas também com o protecionismo europeu na agricultura. Nos governos de turno — notando que o novo impulso deu-se com Michel Temer e Mauricio Macri — tais questões já não incomodam. Para Celso Amorim, que foi chanceler de outro Brasil, a UE pressiona pela conclusão das negociações para se aproveitar da posição fragilizada do Mercosul. Outro ponto notado por alguns é a busca da UE por alternativas face à tensão consequente da política comercial estadunidense sob Donald Trump.
A Comissão Europeia emitiu nota considerando que o novo quadro comercial “irá consolidar uma parceria estratégica ao nível político e econômico e criar importantes oportunidades de crescimento sustentável para ambas as partes, respeitando o ambiente e preservando os interesses dos consumidores e dos setores econômicos sensíveis da UE”. Também deve dar “às empresas europeias um avanço importante num mercado com um enorme potencial econômico” e ainda “consolidar importantes reformas econômicas e a modernização já em curso nos países do Mercosul”.
Certamente satisfeito pela conquista em sua gestão, o presidente cessante da Comissão Europeia — se arrastou até terça (2) a negociação pela nomeação da candidata à sucessão — Jean-Claude Juncker sugeriu que este é um “momento histórico”, trazendo “o maior acordo comercial jamais celebrado pela UE”, onde “os países do Mercosul decidiram abrir os seus mercados à UE.”
A UE é o segundo maior parceiro comercial do Mercosul, depois da China, e o Mercosul é o oitavo maior parceiro da UE. Europeus estimam poupar 4 bilhões de euros (hoje, mais de R$ 17 bilhões) em tarifas e custos alfandegários. O acordo com o Mercosul soma 88 bilhões de euros (cerca de R$ 382 bilhões) em comércio de mercadorias e 34 bilhões de euros (cerca de R$148 bilhões) em comércio de bens e serviços. Produtos europeus como veículos e partes, maquinários, produtos químicos e farmacêuticos, vestuário e calçados e tecidos terão tarifa anulada quando o acordo entrar em vigor, outros — chocolates, doces, vinhos e outras bebidas — progressivamente, enquanto a UE deve zerar as tarifas de 82% das importações agrícolas do Mercosul.
Entre os temas acertados ficou um prazo de 10 a 15 anos para a adequação das economias no objetivo de zerar tarifas. Mas as principais questões levantadas permanecem problemáticas.
Competição agrícola e industrial
Em entrevista ao programa “Boom Bust” da emissora Russia Today, emitido nesta quarta (3), Ruben Cortina, presidente da UNI Global Union, que congrega sindicatos latino-americanos e europeus, abordou as diferenças de perspectivas entre os membros que se opõem ao acordo. Como qualquer exame histórico e econômico menos complexo pode concluir, a indústria dos países do Mercosul, partindo de posição desvantajosa, deve sofrer grande baque. Mas com um setor industrial mais desenvolvido, embora não uniforme entre os membros, na UE a preocupação é a agricultura.
Também refletindo preocupação do setor na Europa, um relatório conjunto da Confederação Geral das Cooperativas Agrárias e do Comitê das Organizações Profissionais Agrárias —que reúnem dezenas de organizações dos ainda 28 estados membros da UE— avalia: “Dentro do Mercosul, o Brasil tornou-se uma força indisputável no mercado global pela produção agrícola, com uma vontade clara de manter sua posição como um exportador líquido. A agricultura na Argentina pende enormemente para o setor vegetal, que se desenvolveu expressivamente, enquanto o setor da carne reduziu em tamanho e agora foca no mercado doméstico.”
Entretanto, se o foco incide na desvantagem competitiva — preferiria que incidisse no paradigma neoliberal e seus impactos sobre os povos — é preciso ponderar também a posição relativa de agricultores europeus e latino-americanos.
Phil Hogan, responsável pela Agricultura e Desenvolvimento Rural na Comissão Europeia, buscou tranquilizar agricultores europeus: “Os produtos agroalimentares únicos e de alta qualidade da UE passarão agora a ter nos países do Mercosul a proteção que merecem, o que reforça a nossa posição no mercado e aumenta as nossas oportunidades de exportação. O acordo de hoje apresenta também alguns desafios aos agricultores europeus que poderão contar com a disponibilidade da Comissão Europeia para os ajudar.” Segundo Hogan, o bloco só abrirá “quotas cuidadosamente geridas aos produtos agrícolas do Mercosul, garantindo assim que nenhum produto possa inundar o mercado da UE e vir ameaçar os meios de subsistência dos agricultores da UE.”
Ainda que legítimas as preocupações dos agricultores europeus — e dos trabalhadores em geral diante do desastre neoliberal — as condições de competição mesmo no setor agrícola continuam desiguais. Além disso, o próprio relatório da Confederação e do Comitê europeus acima citado reconhece o “baixo nível de integração econômica” no Mercosul, diferentemente da UE, que conta com mais tempo de consolidação do processo, congregando mais membros e economias mais avançadas. Da perspectiva latino-americana, a ponderação deve ser somada às análises dos desafios postos por tão irresponsável compromisso, com consequência devastadora para a indústria regional.
Luiz Carlos Bresser Pereira — que como ministro no Governo Sarney e nos Governos de Fernando Henrique Cardozo promoveu a liberalização — tem se destacado na discussão de alternativas capitalistas ao neoliberalismo, com propostas de um novo desenvolvimentismo preocupado com a produção nacional. Diante do avanço do acordo com a UE, foi amplamente citado pela mídia ao vaticinar que o compromisso UE-Mercosul “condena o Brasil ao atraso”.
Na avaliação do economista Nilson Araújo, o acordo é bom para a UE “e, particularmente, para quem hegemoniza a União Europeia, que é a Alemanha. Não é um bom acordo para os países do Mercosul. A prevalecer essas condições, a tendência é completar-se a desindustrialização regional.” O professor, membro da Comissão Política do PCdoB, ressalta que a fatia da indústria de transformação no conjunto da produção no Brasil é de 10%, mas já foi de um terço nos anos 1980, um retrocesso provocado pelas políticas neoliberais.
Um acesso à página da Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) permite avaliar as séries históricas do comércio exterior para entender a que ponto chegamos, com categorias importantes para a avaliação, como a medição da intensidade tecnológica.
1) Agricultura e pecuária; coleta, tratamento e disposição de resíduos; recuperação de materiais; desperdícios; extração de carvão mineral, de minerais metálicos, de minerais não metálicos, de petróleo e gás natural; pesca e aquicultura; produção florestal; produtos alimentícios; não alocados; produtos de atividades cinematográficas, de produção de vídeos e de programas de televisão, gravação de som e edição de música; produtos de edição e edição integrada à impressão.
2) Aeronaves, equipamentos informáticos, produtos eletrônicos e ópticos, produtos farmaquímicos e farmacêuticos.
3) Máquinas N.C.O.I. (Não Classificado em Outro Código ISIC —padrão internacional de classificação industrial); máquinas, aparelhos e materiais elétricos; produtos químicos; veículos automotores, reboques e carrocerias (o mais expressivo); veículos ferroviários e equipamentos de transporte N.C.O.I.
4) Coque, produtos derivados do petróleo e biocombustíveis; embarcações navais; metalurgia (o mais expressivo); produtos de borracha e material plástico; produtos de metal, exceto máquinas e equipamentos; produtos minerais não metálicos.
5) Outras manufaturas N.C.O.I.; artigos de vestuário e acessórios; bebidas; celulose, papel e produtos de papel; couros, artefactos de couro, artigos para viagem e calçados; equipamentos de informática, produtos eletrônicos e ópticos; impressão e reprodução de gravações; madeira e seus produtos; móveis; produtos alimentícios; produtos de fumo; produtos têxteis.
A tabela, elaborada com dados do portal da CAMEX, mostra o tamanho da discrepância na importação e importação dos produtos industrializados —o item 1, onde se concentra a maior parte da exportação brasileira, inclui a agricultura e pecuária e demais atividades primárias. Mesmo assim, já durante campanha eleitoral o ministro da Economia Paulo Guedes dizia que seu plano visava “salvar a indústria brasileira apesar dos industriais brasileiros”. Com isso, parece lição a notícia desse fim de junho de que Guedes deve formalizar resolução da Camex que anula as alíquotas de importação de bens de capital, informática e telecomunicações também produzidos no país, expondo a produção nacional. Segundo o aspirante a Chicago Boy, seguidor de Milton Friedman na esfarrapada doutrina do livre mercado, é preciso dar um chacoalhão no empresariado brasileiro que, na arena dos gladiadores, terá de se virar para competir e, assim, impulsionar a produção.
Para o governo atual, até conceitos como “desenvolvimento” parecem estar sob suspeita. Entretanto, a advertência é conhecida: enfrentando um processo de desindustrialização que se arrasta há cerca de quatro décadas, o Brasil cede à ânsia das potências de se firmar como “mero exportador de commodities”. Como indica Bresser Pereira, parte da discussão centra-se na oposição protecionismo / criação de igualdade de condições —se é que tal igualdade pode ser de fato alcançada na atual configuração do sistema comercial internacional através de acordos pontuais.
Desnecessário dizer que o primeiro fator, protecionismo, é condenado à exaustão, enquanto o segundo é frequentemente descartado como sinônimo do primeiro. Bresser-Pereira recobra: “Quando em 1990, depois da preparação iniciada por mim, o Brasil baixou suas tarifas médias de importação de 45 por cento para 12 por cento, desmontamos nosso sistema de neutralização da doença holandesa e a indústria brasileira passou a enfrentar uma desvantagem competitiva muito grande.” Indicando que uma das formas de revitalizar a indústria nacional é, como muito defendido, aumentar as tarifas de importação de manufaturados, defende: “Ao fazer isso, não estaria sendo protecionista, mas estaria estabelecendo igualdade de condições para as empresas localizadas no Brasil (nacionais ou multinacionais) em relação às empresas localizadas em outros países.”
Entretanto, Nilson Araújo avança, argumentando que a questão não é só tarifária. Na UE, afirma o economista, “há barreiras não tarifárias muito fortes para produtos industriais, que o Mercosul poderia exportar para lá, mas principalmente para os produtos agrícolas do bloco. Estas barreiras são dão sob a forma de subsídios e cotas” — como disse o comissário Phil Hogan, citado cima, para tranquilizar agricultores europeus — e as chamadas medidas antidumping. Além disso, Araújo denuncia a consequente exportação de empregos para a UE e a reprimarização da economia diante da descomunal desigualdade competitiva.
Integração regional ou multilateralismo para quê
Se a integração é parte de uma estratégia de fortalecimento para enfrentar as pressões num sistema mundial iníquo de onde as potências buscam extrair o máximo dos países ditos “em desenvolvimento” e dos mais empobrecidos, o processo Mercosul está longe de estar fortificado para enfrentar um acordo de livre-comércio com a Europa. Se em quase três décadas do Tratado de Assunção não se logrou tal feito, como será suficiente o prazo de 10-15 anos para a adequação das economias do bloco para enfrentar o acordo em pleno funcionamento zerando tarifas — e em tempos de crise? A falta de clareza sobre a condição destas nações no sistema internacional é de uma estreiteza que só pode levar à catástrofe.
Foi esse também o diagnóstico sobre a empolgação de Bolsonaro com a indicação de Donald Trump de que este apoiaria a entrada do Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — claro, com a condição de que o Brasil faça concessões no âmbito da Organização Mundial do Comércio, onde o país ainda teria margem para se defender, renunciando ao status de nação em desenvolvimento, que lhe garante alguma proteção, para negociar em “condições de igualdade” com as nações mais ricas. Assim, o Brasil “ganha” status de país desenvolvido, anunciou-se no portal de notícias G1; passamos por força de vontade ou torpeza —malgrado a realidade, na ausência factual das tais “condições de igualdade” — ao seleto grupo dos países desenvolvidos, para nele o Brasil ser dilapidado. Novamente.
Quanto detrito se acumulou sobre a tão evocada “política externa altiva e ativa” dos anos Lula-Amorim. Pretéritos são avanços como o papel do Brasil na rodada de Doha da OMC, promovendo temas de maior interesse dos países em desenvolvimento e o multilateralismo face às pressões hegemônicas das potências e sua opção por negociações bilaterais; ou em contenciosos como o relativo aos subsídios e garantias estadunidenses à sua produção de algodão contrários ao acordado na OMC, enfrentando os EUA; ou na própria criação do G20 das nações em desenvolvimento. Agora a prioridade parece ser a luta pela salvação do país diante da rendição total.
Para Araújo e Bolsonaro, certamente, a política adotada pelo Brasil até a sua chegada não passa de “ideológica” — leia-se, “comunista”, a ser absolutamente obliterada. Embora desejável numa análise sã e engajada, sequer é preciso recorrer a obras como as do economista marxista egípcio, terceiro-mundista Samir Amin para entender a posição do Brasil e demais países e povos do Mercosul neste xadrez neoliberal e neocolonial. Afinal, que urticárias causariam as linhas de Amin, no distante 2008: “Para que um sujeito histórico emerja, um que seja popular, diverso e multipolar, é necessário definir e promover alternativas capazes de mobilizar forças sociais e políticas. A transformação radical do sistema capitalista é o objetivo.”