A jornada de Esty pela liberdade
Esty, movida pela vontade de desenvolver sua arte, de fugir de uma relação opressora e de encontrar sua liberdade rompendo com as amarras impostas por uma tradição ortodoxa patriarcal, decide fugir para Berlim, uma vez que possuía cidadania alemã e era onde sua mãe estava residindo
Publicado 24/08/2021 18:23
“Nada Ortodoxa” é uma minissérie em 4 capítulos da Netflix que assisti de uma só vez no início da pandemia em março de 2020. Conta a história real de uma jovem corajosa que consegue fugir de sua estrita comunidade hassídica (seita de judeus ultraortodoxos) (1) no Brooklyn, para viver uma vida secular em Berlim.
Assinada por Anna Winger e Alexa Karolinski e dirigida pela alemã Maria Schrader, baseada na autobiografia de Deborah Feldman com obra publicada em 2012, “Nada Ortodoxa” retrata o momento em que Esther (protagonista da série) foge de um casamento combinado, oficializado quando tinha apenas 17 anos. O título original: “Unorthodox: The scandalous rejection of my hasidic roots” (em tradução livre, “Não Ortodoxa: A Escandalosa Rejeição das Minhas Raízes Hassídicas”) resultou na série “Nada Ortodoxa” – (Unorthodox).
Esther (ou Esty), interpretada pela atriz Shira Haas, é uma jovem judia que tem sua vida demarcada pela injunção de um casamento arranjado. Esty, que acalentava a expectativa de que o casamento poderia ser o início de uma vida melhor, acaba por romper com seus sonhos de juventude. Tanto a protagonista real como a atriz nasceram e cresceram na comunidade hassídica Satmar, uma das linhas ultraortodoxas da religião judaica, em Williamsburg, no Brooklyn, e foram criadas pelos avós, sobreviventes do Holocausto. A vida de Esty torna-se um pesadelo cotidiano pelas cobranças da família, a pressão social da comunidade para que a jovem se torne mãe pela imposição de um casamento que responda às tradições. A gravidez que não chega após um ano de casamento, vividos com sentimentos de angústia e de uma sexualidade sofrida, faz com que o seu marido Yanki (interpretado por Amit Rahav) peça o divórcio, julgando que ela nunca lhe daria filhos, uma vez que uma das regras da doutrina é “povoar o mundo”, uma alusão ao Holocausto, genocídio ocorrido contra os judeus pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Nessa comunidade, quando ocorre a infertilidade, o divórcio é plenamente justificado. As mulheres que não podem ter filhos, são rejeitadas e vistas como inúteis e sem valor.
Simone de Beauvoir, filósofa e escritora francesa, publica em 1949 o “Segundo Sexo”, obra fundamental cujas principais ideias demarcam as lutas feministas no início do século XX. Contesta o determinismo biológico defendendo que as mulheres devem ter o direito de ser. Sua frase célebre constantemente citada em artigos, debates, eventos “não se nasce mulher, torna-se mulher” encaixa como uma luva no drama da jovem Esty, movida pela vontade de desenvolver sua arte, de fugir de uma relação opressora e de encontrar sua liberdade rompendo com as amarras impostas por uma tradição ortodoxa patriarcal, decide fugir para Berlim, uma vez que possuía cidadania alemã e era onde sua mãe estava residindo.
Tão logo chega, conhece um grupo de jovens músicos e passa a descobrir uma vida totalmente diferente do que vivia anteriormente. Seu sonho de se expressar e existir através da música pode finalmente começar a tomar forma, uma vez que fora impedida dentro da comunidade hassídica. Nessa comunidade, antes do casamento, o cabelo das mulheres é raspado, sendo principal razão desse costume a proteção da mulher dos olhares de outros homens e também um sinal de que ela está casada (2). Em Berlim, quando os novos amigos de Esty entram no lago e a chamam, a peruca que usava para cobrir a cabeça raspada se desprende como se tivesse se libertando de sua vida anterior para sua nova vida.
O judeu ortodoxo cumpre fielmente os princípios do judaísmo, rejeitando mudanças e renovações nos costumes e nos rituais religiosos. No judaísmo ortodoxo, os preceitos da Lei Judaica (Halachá) são cumpridos quase sempre à risca como forma de preservar a tradição. O Rabino, líder religioso da comunidade, decide enviar Yanki e seu primo Moishe Lefkovitch (Jeff Wilbusch) para Berlim em missão de trazer Esty de volta para a comunidade com cenas em que o primo mostra toda sua misoginia. Esty, mesmo coagida, mantém sua decisão e permanece em Berlim tomando seu destino na mão.
A série é um convite à coragem e à sensibilidade. Mostra o quanto a comunidade hassídica preserva uma cultura patriarcal atravessando gerações, reproduzindo opressões nas famílias, e principalmente nas mulheres. Vemos mulheres desrespeitadas em suas vidas, tolhidas profissionalmente, impedidas de exercer sua individualidade, seu prazer, coisificadas. Ao mesmo tempo, “Nada Ortodoxa” evidencia como as mulheres buscam seu espaço público e de como o patriarcado, neste caso atrelado ao dogmatismo, tem invisibilizado e impedido durante séculos as mulheres de se emanciparem. A rebeldia se mostra para Esty como uma ferramenta fundamental para sua afirmação e para sua liberdade. “Nada Ortodoxa” nos convida a apreciar a criativa e subversiva capacidade de resistência das mulheres à opressão patriarcal.
Notas:
(1) Importante ressaltar que na comunidade judaica existem múltiplas formas de praticar a religião, sendo algumas mais tolerantes e outras menos tolerantes, chegando a extremos de dogmatismos que cerceiam a liberdade das pessoas, assim podemos citar o Estado sionista de Israel que extermina o povo palestino contando com o patrocínio do imperialismo norte-americano.
(2) https://www.hipercultura.com/curiosidades-sobre-os-judeus-ortodoxos/
Referências:
- BEAUVOIR, Simone. (1967) O Segundo Sexo, Volume 2. Difusão Européia do Livro, 2ª Edição, 1970.
- http://www.primeiranoticia.ufms.br/opiniao/nada-ortodoxa-uma-jornada-de-recomecos/1603/
- https://www.hipercultura.com/curiosidades-sobre-os-judeus-ortodoxos/