A destemida Antonia
Filme holandês de 1995 celebra o poder das mulheres através de uma narrativa feminista, humanista e libertadora, explorando a vida e a morte em uma comunidade rural patriarcal.
Publicado 20/08/2024 16:46
Sabem daqueles filmes que ficam marcados na memória e que você quer voltar a ver? Mais do que isso, ele fica martelando em suas recordações por seu sentido contestatório e significado humanista e libertador? O filme holandês de 1995, Antonia, escrito e dirigido por Marleen Gorris, foi vencedor do Oscar de Filme Estrangeiro em 1996; recebeu ainda prêmios como o Melhor Filme do Festival de Toronto, Melhor Roteiro no International Film Festival de Chicago e Melhor Direção no Hamptons Film Festival. A mulher retratada no filme por Marleen é real, protagonizada com todas as virtudes, incertezas e rebeldias. As mulheres reais sofrem sob a violência de gênero, mas resistem a ela e a suplantam com a força coletiva emanada da personagem central.
“A excêntrica família de Antonia”, título brasileiro dado ao filme, é digno de indicação para assistir diversas vezes. A corajosa e destemida Antonia (Willeke van Ammelrooy) não só atravessou quatro gerações de mulheres como também forjou valorosas, corajosas e sabias descendentes. Elas destoam totalmente do lugarejo em que Antonia nasceu e ao qual retorna 20 anos depois com sua filha Daniele (Els Dottermans). Destoam porque, nessa comunidade rural, aliás com belissima fotografia, o patriarcado tem força e reina de forma a permitir que estupros sejam acobertados, inclusive com a complacência do padre do local.
A película se inicia na quarta década do século XX (após a Segunda Guerra Mundial), e evidencia a celebração aos ciclos da vida, o nascimento de meninas, num povoado em que ser mulher é sofrer e servir. O filme ao mesmo tempo anuncia-se como uma celebração sobre a morte, de forma tão natural que se mistura com a comemoração da vida. Pela força de Antonia, de sua representação altiva, todas as mulheres que nascem em sua família tornam-se mulheres determinadas em que a presença masculina tem outro significado, totalmente diverso daquele imposto às mulheres do lugarejo, relegadas à submissão e à invisibilização, próprias de uma sociedade patriarcal, onde o poder masculino desfruta de privilégios e dominação econômica.
Antonia, que representa uma família matriarcal forte, não só exemplifica para sua descendência um papel das mulheres sem necessidade da presença masculina a não ser para atender a seus desejos e para procriação, assim como acolhe a todos e todas que sofrem diversos tipos de violência e discriminações. Ela instala no lugarejo e em sua casa um acolhimento de diversas pessoas que então podem viver momentos de prazer tanto na labuta do trabalho como nos almoços que parecem ser aos domingos, após a missa, que se tornam horas de grande alegria. Configura-se um clima de trocas e de contentamento. Antonia é adepta da liberdade, tanto é que, para si, vive momentos de grande felicidade ao lado de um viúvo com cinco filhos. Ele propõe casamento a ela, dizendo que precisa de uma mãe para seus filhos, ao que ela responde que não precisa de seus filhos. No decorrer da película, situações interessantes e surpreendentes vão sendo desenroladas demonstrando uma troca de afetos de certa profundida entre a família de Antonia e seus adotados. Boer Bas (Jan Decleir) diverge do comportamento dos homens do local, se tornando uma boa referência de masculinidade não-tóxica, um pai amoroso, trabalhador que nutre desde o inicio uma admiração por Antonia, ambos apaixonando-se e registrando ocasiões de grande entrega. Antonia, ao declarar aceite da proposta de Boer, fala: “Uma vez você pediu minha mão em casamento, não darei minha mão, mas o resto” (…).
Momentos de intercâmbios filosóficos, com conteúdo de forte melancolia, ocorrem e trazem mais força ao filme, com inspiração de diálogos trocados ou ensinados pelo personagem “Dedo Torto” (Mil Seghers), amigo pessimista de Antonia desde criança. Ele, com sua neta prodígio Therese, filha de Daniele que cita diversas frases de Schopenhauer, em um dos diálogos: “E o tempo, quem o inventou? – Talvez as formigas tenham um tempo, e os grilos, e as abelhas, e as borboletas, e as árvores, e as estrelas, e a lua? ” Com profundo sofrimento após o estupro de Therese, por um morador da localidade, Dedo Torto, citando outra frase de Schopenhauer, fala: “O mundo é um inferno habitado por espíritos atormentados e demônios”. E, ainda: Dedo Torto enfatiza: “O mal de quem acredita em Deus é que a fé comanda seu intelecto, e na minha opinião religiões só causam morte e destruição.”
Sarah, da quarta geração de Antonia, foi confiada a Dedo Torto para parte de sua educação. Ele era contra o nascimento dela, mas em um dos únicos momentos de otimismo disse a Sarah que podiam ler Nietzsche juntos e cita: “nada morre para sempre, alguma coisa sempre fica, de onde outra nasce.”
É um filme de forte impacto, feminista, de louvor à vida, apesar de iniciar e terminar com o tema da morte.
A Excêntrica Família de Antonia (Antonia, Países Baixos, 1995)
Direção: Marleen Gorris
Roteiro: Marleen Gorris
Elenco: Willeke van Ammelrooy, Els Dottermans, Veerle van Overloop, Jan Decleir, Dora van der Groen, Esther Vriesendorp, Carolien Spoor, Thyrza Ravesteijn, Mil Seghers, Elsie de Brauw, Reinout Bussemaker.
Duração: 102 min.