A arte deve ser transgressora para mudar o mundo

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Em artigo anterior, tratei do veto presidencial à Lei Paulo Gustavo, que destina recursos ao setor cultural, um dos mais atingidos pela pandemia. Todo mundo sabe disso, menos o desgoverno. Neste ano de embate político-eleitoral decisivo para o país, é importante debater sobre a necessidade da arte e o papel que a cultura tem na vida das pessoas. Até porque a luta na cultura se insere na luta política, social e econômica para a transformação.

Certa vez me chamou a atenção um menino com uma lata d’água na cabeça, subindo um morro de uma favela em São Paulo, cantando “tudo está no seu lugar graças a Deus”, versos da música Tudo Está no Seu Lugar, de Benito de Paula.

Esse fato me deu a noção de que algo muito grave estava fora da ordem e para pôr tudo no seu devido lugar é necessário se engajar para estar próximo dessa gente humilde e sem acesso, muitas vezes, ao essencial para alimentar o corpo e a alma.

E é preciso compreender todas as culturas que temos. Como a cultura dos 305 povos indígenas no país, que falam 274 idiomas diferentes, como diz a Fundação Nacional do Índio. A cultura do Brasil profundo descrito no livro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, que causou espanto em setores da mídia tradicional. E também em diversos outros livros que mostram o povo único que somos. Como disse o jornalista Paulo Henrique Amorim (1943-2019): nem melhor, nem pior, mas diferente.

Numa entrevista a um jornal do ABC Paulista, em 1997, o dramaturgo Luiz Alberto de Abreu reclamou do pouco apreço pela cultura e pela arte inclusive por parte da esquerda. E afirmou que o Ministério da Cultura somente teria relevância quando o ministro escolhido pertencesse ao movimento cultural.

De 1997 para cá muita água rolou e a esquerda se aproximou mais da cultura e das manifestações culturais e artísticas ao compreender, até um certo ponto, a necessidade da arte em nossas vidas. Mas ainda é preciso aprofundar mais o entendimento de que a cultura pode ser um dos fatores importantes para a transformação do mundo se caminhar com a vontade política de estar onde o povo está, como na música de Milton Nascimento e Fernando Brant. E junto com essa gente buscar a mudança. Para tanto, é importante que o movimento sindical e os movimentos sociais falem de cultura, façam cultura e promovam atividades culturais em seus eventos.

Para confirmar o que disse Abreu, Gilberto Gil assume o cargo no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, e coloca o Ministério da Cultura no mapa da vida do país. Com ele e depois dele foram criadas inúmeras políticas públicas importantes para o fomento a cultura. Iniciava-se o esboço de um Sistema Nacional de Cultura, necessário para o país abarcar toda as suas manifestações culturais. O Ponto de Cultura é um exemplo gigante para esse fim.

Parte da nossa arte nos mostram o Brasil profundo. Esse Brasil maltratado por uma elite que nutre grande desprezo aos mais pobres, aos negros, aos indígenas e a tudo o que representa o feminino. É verdade que outra parte da cultura despreza esse Brasil profundo, inclusive movimentos liderados por grandes artistas e escritores em nossa história. Isso não tira a importância desses movimentos, mas destaca a necessidade de furarmos a bolha e conversarmos com o que chamam de massa.

Como na canção A Massa, de Jorge Portugal e Raimundo Sodré: “Moinho de homens que nem jerimuns amassados/Mansos meninos domados, massa de medos iguais/Amassando a massa a mão que amassa a comida/Esculpe, modela e castiga a massa dos homens normais”.

E como a extrema-direita e os religiosos fundamentalistas utilizam a retórica como prática discursiva, disseminam a xenofobia, a violência de gênero, a discriminação de todos os tipos para engabelar e impedir a necessária discussão sobre a construção de um mundo novo, onde prevaleça o respeito a todas as pessoas, sem distinções.

Porque “meu choro não é nada além de carnaval/É lágrima de samba na ponta dos pés/A multidão avança como vendaval/Me joga na avenida que não sei qualé/Pirata e Super Homem cantam o calor/Um peixe amarelo beija minha mão/As asas de um anjo soltas pelo chão/Na chuva de confetes deixo a minha dor/Na avenida deixei lá” (A Mulher do Fim do Mundo, de Alice Coutinho e Romulo Fróes.

O ódio de classe também se revela em manifestações culturais e artísticas de algum modo. Por isso, não há estranhamento quando um tipo como Mário Frias é nomeado o responsável pelas políticas culturais do país. Ou melhor, a falta totalmente delas.

Os nazistas sempre propugnaram ódio às manifestações culturais transgressoras e mais ainda às manifestações populares e voltadas para a transformação da sociedade, mas defendem a cultura da opressão, do medo, da violência. Por isso, torna-se crucial a eleição de 2022 para o Brasil.

E para a formulação de uma política sólida para a cultura é importante debater a questão da língua, que alguns já chamam de “língua brasileira”, de tão diferente da falada em Portugal. Também faz-se mais do que necessário resgatar a herança africana e indígena em nossa cultura, garantindo espaço para a população negra e aos povos indígenas se expressarem, espaço quase sempre negado, inclusive na cultura. Enfim, uma política cultural voltada para uma modernização revolucionária de nossa sociedade. Assim como garantir espaço às mulheres, aos LGBTQIAP+s.

Para isso, derrotar o fascismo é essencial, mas o engajamento deve ser permanente para derrotar a manipulação da economia e da cultura feita pelo capitalismo. Como disse Marcio Pochman em um evento da CTB há alguns anos: “Nós perdemos o debate de ideias” para a burguesia. E para atingir o Brasil profundo como se deseja, a cultura e a arte são partes importantes nesse esforço. E “vamos precisar de todo mundo pra banir do mundo a opressão”, como canta Beto Guedes.

Então empresto as palavras de João Ricardo, na música gravada pelo grupo Secos & Molhados, em 1978: “Que fim levaram todas as flores?/Que o preto velho me contava/Que fim levaram todas as flores?/Que a rainha louca não gostava/Que a lapela morta carregava/Que o olhar de todos me lembrava/Que fim levaram todas as flores?/Que qualquer coisa não estragava/Em qualquer dia que podia/Com grande amor e alegria/Que fim levaram todas as flores?/Que a criança às vezes me pedia”.

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