A Amazônia vista por Frei Gaspar de Carvajal

“… disse ainda que entre essas mulheres há uma da qual as outras são súditas ficando sob sua jurisdição e que ela se chama CONHORI” (Carvajal sobre as lendárias amazonas).

A amazônia sempre representou, para a quase totalidade de seus visitantes, um misto de encantos e preconceitos. Inicio, a partir desta edição de nosso Portal Vermelho, a série “Amazônia vista por estrangeiros”, contendo artigos sobre a impressão e a expressão de vários desses visitantes (aventureiros, religiosos, mandatários, cientistas) sobre a região, na tentativa de fornecer dados e subideiros que possam melhorar a compreensão de todos sobre essa singular parte do planeta.

Inicio, naturalmente, pelo 1º que oficialmente lhe resenhou: o jesuíta Frei Gaspar de Carvajal, que acompanhou o espanhol Orelhana na histórica expedição Quito-Foz do Amazonas, nos idos de 1539/42.

Como se sabe, a colonização europeia no continente americano teve inicio com a chegada de Cristovão Colombo na ilha de Guanahani em 12.10.1492, nas ilhas antilhanas, das quais tomou posse em nome dos reis católicos espanhóis, Isabel de Castilha e Fernando de Aragão.
No dia 22.04.1500 uma armada portuguesa, sob o comando de Pedro Alvares Cabral, ancorou nas costas do futuro Brasil. O capital Cabral denominou o território encontrado Terra de Vera Cruz e dela tomou posse em nome da coroa portuguesa.

Tanto os espanhóis quanto os portugueses tinham um rito comum: tomada de posse, ato mágico da denominação e a dominação efetiva das culturas autóctones, em especial o objetivo de converter os ameríndios à Santa Fé, ação que julgavam poder executar sem maiores dificuldades.

Por volta de 1522, a dominação de América iniciava seu ciclo mítico com a derrota do império azteca (México) pelo grupo castelhano de Hernán Cortés e por um contingente de índios tlaxtaltecas. Dez anos mais tarde, em fins de 1532, Francisco Pizarro capturou em Cajamarca (Peru) o imperador Atahualpa, e se apoderou do império inca. Nenhuma das duas conquistas foi uma empresa fácil, mas foi a partir desses triunfos espetaculares que se consolidou a mitologia glorificadora da figura do conquistador e que gerações de críticos apreciaram a chamada “civilização da América” em termos de uma história épica.

Que a conquista da América contou com o sustento da religião cristã para justificar o expansionismo ibérico, é inegável. Os índios aparecem aos olhos europeus como bárbaros que deviam ser subjugados, como feras a serem domadas, como inumanos carentes da verdadeira religião que deveriam ser redimidos ou exterminados. O que lhes sobejava, era a idolatria, o canibalismo, a sodomia, preguiça, irracionalidade.

O domínio do México e do Peru, como também a captura de tesouros magníficos, estimulou a incursão dos guerreiros espanhóis pelos territórios americanos inexplorados. Idealmente, o processo do descobrimento e o da conquista confundia-se num mesmo evento. Descobria-se para conquistar e saquear os tesouros indígenas.

Só a partir de então a coroa espanhola e portuguesa deram alguma atenção a essa enorme região chamada amazônia. A coroa espanhola tomou a iniciativa e incubiu Gonzalo Pizzaro (substituído por Francisco Orelhana) de executa-la. Essa saga está registrada no “Relatório sobre o novo descobrimento do famoso Rio Grande, descoberto por graça divina, desde a sua nascente até à sua foz, pelo capitão de Orelhana”, no qual o Frei Carvajal registra suas impressões.

Muitos pesquisadores consideram esse relatório excessivamente fantasioso. Talvez seja. Há muitas evidências nesse sentido, incluindo a lenda das Amazonas, as quais Carvajal assim descreve: “elas estavam lutando como lideres na frente dos índios e lutavam tão decididamente que os índios não usavam nos dar as costas, pois aqueles que fugissem de nós elas matavam a pauladas. Sendo esta razão porque os índios se defendiam tanto. Estas mulheres são muito brancas e altas e tem longos cabelos traçados e enrolados na cabeça, são musculosas e andam nuas em pelo, cobrindo sua vergonha com os arcos e as flechas nas mãos lutando como dez índios”.

Segundo Alfred Russel Wallace tratava-se de guerreiros convencionais. Como eles tinham longas cabeleiras e arrancavam os pelos das sobracelhas eram facilmente confundidos com mulheres. Polemica a parte, o relatório de Carvajal é o 1º documento histórico sobre a região e jamais poderá ser desconsiderado.

A expedição saiu de Quito, no Equador, e chegou na foz do amazonas 2 anos e oito meses depois, enfrentando as mais duras provações, dentre as quais de não saber sequer, ao certo, para onde estavam indo.

Fica patente no relato de Carvajal que a região era densamente povoada, com registro de aldeias com mais de 25 km de extensão. A atitude dos índios em relação ao invasor era distinta. Há relatos de grande amistosidade e combates ferozes, o que é absolutamente verdadeiro até os dias de hoje, de acordo com a etnia contatada.

Também fica evidente que, diferente do que o senso comum e inclusive outros relatos procuraram explorar, havia uma atividade produtiva regular na região, o que seria impensável diante de uma grande população, que jamais poderia viver apenas do extrativismo. Por isso o registro de comida farta, quando eles eram recebidos de forma amistosa, é uma constante no relato de Carvajal, especialmente de tartarugas, peixe-boi, carne, peixes diversos, biscoitos (de milho e mandioca), perdizes, gatos, macacos assados, galinhas, ovelhas e até perus, milho, mandioca e farinha, frutas como pinhas e peras, que “na língua da Nova Espanha, se chamam abacates, ameixas, guanas e muitas outras frutas deliciosas”. Adiante afirma: “achamos muito milho (e também muita aveia), da qual os índios fazem pão, e muito bom vinho parecido com cerveja. Achou-se na aldeia uma adega deste vinho, o que alegrou os nossos companheiros e também muito boa roupa de algodão”.

Como, igualmente, é recorrente a penúria quando eles não tinham acesso a comida dos índios, cuja síntese está expressa nessa passagem do relatório: “sobrevivemos comendo couros, cintos e solas de sapatos cozidos com ervas…” ou quando afirma que “assim, estávamos todos, sem entendermos muitas coisas, de modo que tínhamos guerra por terra e fortuna por água; quis nosso senhor Jesus Cristo ajudar-nos e favorecer-nos como sempre fez em todas esta viagem, e que nos guiou como gente perdida, sem saber onde estávamos nem para onde fomos, nem o que haveria de ser de nós”.

Numa região com abundância de peixes e frutos naturais, a fome extrema resenhada por Carvajal revela que a expedição do Capitão Orelhana tinha um baixo domínios das técnicas de sobrevivência na selva amazônica.

Também há relato do que certamente era alguma expedição precursora de europeus, pois não há índios com as características descritas por Carvajal como no trecho a seguir: “nesse meio tempo, quatro índios vieram ver o capitão. Quando chegaram, vimos que cada um tinha um palmo a mais do que o mais alto de nós, e eram muitos brancos. Seus cabelos chegavam até a cintura. Usavam muitas joias e muitas roupas”.

Tirando eventuais fantasias e alguma confusão na troca de nomes de alguns frutos, o relato de Carvajal não foge ao preconceito de afirmar que os índios eram inumanos, mas ajuda a compreender que os 7 milhões de índios existentes na amazônia por época de sua ocupação não é um delírio de antropológico.

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