China constrange guerra comercial dos EUA ao zerar tarifas para países pobres
O cientista político Augusto Leal Rinaldi avalia que a decisão da China mostra comprometimento com o Sul Global e uma agenda de facilitação de intercâmbio comercial
Publicado 04/12/2024 17:41 | Editado 06/12/2024 08:43
A China deu mais um passo em sua disputa econômica com os Estados Unidos ao anunciar medidas que reforçam sua posição no cenário global e ampliam sua influência nos países menos desenvolvidos. Desde 1º de dezembro, Pequim adota uma política de tarifa zero para todos os produtos originados de países classificados como os menos desenvolvidos do mundo, conforme critério da ONU. A medida visa estimular o intercâmbio comercial com essas nações e consolidar a China como parceiro estratégico do Sul Global.
A isenção vale para países que tenham relação diplomática com a China e renda per capita bruta inferior a US$ 1.018 dólares. Essa política deve servir a cerca de 30 países africanos, tais como Angola, São Tomé e Príncipe e Ilhas Salomão. A China é o primeiro país de grande porte a oferecer essa alternativa a países com pouca inserção no comércio internacional.
Retaliação estratégica e aproximação com o Sul Global
O cientista político Augusto Leal Rinaldi (PUC-SP), autor de O Brics nas Relações Internacionais Contemporâneas: Alinhamento Estratégico e Balanceamento de Poder Global (Appris, 2021), analisa em entrevista ao Portal Vermelho a nova estratégia chinesa como um movimento de duplo impacto.
“As imposições tarifárias dos Estados Unidos não serão recebidas impunemente pela China. Os chineses têm condições de retaliar – e é o que estão fazendo ao reduzir a exportação de minérios necessários para a fabricação de componentes tecnológicos – e isso mostra, sobretudo à nova administração Trump que se iniciará em 2025, que a guerra comercial também afetará negativamente os Estados Unidos”, destacou Rinaldi.
A decisão de isentar países menos desenvolvidos de tarifas de importação também carrega uma mensagem geopolítica. Segundo Rinaldi, Pequim busca se posicionar como um ator global comprometido com a estabilidade e o desenvolvimento, particularmente da África, contrastando com a postura isolacionista dos EUA.
“Isso demonstra a disposição da China de se apresentar como um país comprometido com uma agenda de globalização e facilitação de intercâmbio comercial. Os chineses aparecem como um país preocupado com a estabilidade global e sensível aos interesses dos países de menor desenvolvimento relativo. Parece-me ser uma estratégia de maior alinhamento aos países do chamado Sul Global e, ao mesmo tempo, um posicionamento de grande potência ao lidar de maneira assertiva à postura iliberal por parte de Washington”, analisa ele.
Impactos na África e no comércio global
Com a medida, cerca de 30 países africanos poderão exportar seus produtos à China sem tarifas, desde que mantenham relações diplomáticas com o gigante asiático. Essa política se soma a décadas de investimentos chineses na África. De acordo com a Iniciativa de Pesquisa China-África (CARI), os investimentos diretos da China na região saltaram de US$ 74,8 milhões em 2003 para US$ 4,23 bilhões em 2020. Em setembro, o presidente Xi Jinping anunciou um financiamento adicional de US$ 50 bilhões para os próximos dez anos.
O porta-voz do Ministério do Comércio chinês, He Yongquian, indicou que a política tarifária busca integrar os países menos desenvolvidos ao “vasto mercado chinês”, promovendo oportunidades econômicas mútuas. No entanto, críticos apontam que a dependência econômica da África em relação à China pode reforçar assimetrias no longo prazo, embora essa dependência dos EUA e economias europeias seja mais nociva, com ganhos principalmente para essas potências.
A cooperação China-África está alinhada com os objetivos da UNCTAD de promover o desenvolvimento sustentável por meio de investimentos em infraestrutura que aprimoram as capacidades de fabricação da África, aumentando as oportunidades comerciais, fomentando a diversificação econômica e integrando os países africanos à cadeia de valor global.
Tensões com os EUA e o futuro do BRICS
Enquanto a China avança com medidas de integração econômica, os EUA endurecem as restrições à exportação de tecnologias avançadas para o gigante asiático. O Bureau of Industry and Security (BIS), órgão ligado ao Departamento de Comércio norte-americano, anunciou controles adicionais sobre semicondutores, uma resposta à crescente competitividade tecnológica chinesa. Pequim reagiu restringindo a exportação de materiais críticos como germânio e gálio, essenciais para a produção de chips, afetando diretamente a cadeia produtiva dos EUA.
A relação entre China e EUA também se aquece no âmbito do BRICS. Donald Trump, presidente eleito dos EUA, ameaçou impor tarifas de 100% sobre os produtos de países membros caso avancem propostas como a criação de uma moeda comum, discutida na cúpula do grupo em outubro, em Kazan, Rússia.
A análise do especialista sugere que a disputa vai além da economia. A retórica de Trump contra o BRICS e as restrições tecnológicas são respostas ao crescente protagonismo chinês e à tentativa de balanceamento de poder global. Pequim, por sua vez, busca se consolidar como líder de uma ordem multipolar que desafia a hegemonia dos EUA.
O que está em jogo
As recentes ações de Pequim mostram que a guerra comercial com os EUA não é apenas uma disputa econômica, mas uma batalha pela definição da nova ordem mundial. Enquanto os Estados Unidos reforçam o protecionismo e a rivalidade tecnológica, a China investe em alianças comerciais estratégicas e se apresenta como defensora da globalização inclusiva.
O cenário para 2025 será decisivo, com a reconfiguração das políticas externas de ambas as potências e o impacto disso sobre o BRICS e o comércio global. A rivalidade entre Washington e Pequim deve moldar não apenas as relações bilaterais, mas também o equilíbrio de poder no século XXI.