Apagão em SP põe em xeque privatizações e modelo regulatório de agências
Além de expor problemas clássicos da privatização de setores básicos, como a precarização dos serviços, crise elétrica vivida em São Paulo também evidencia falhas na regulação
Publicado 17/10/2024 19:31 | Editado 18/10/2024 11:49
Da situação vivida por são Paulo, maior cidade da América Latina que há dias tem parte de seu território sem luz, emergiu um quadro que volta a evidenciar as graves falhas do modelo de privatização, sobretudo de setores estratégicos e, em especial, o papel das agências reguladoras.
Para além do descaso da prefeitura, comandada por Ricardo Nunes (MDB) com a parte que lhe cabe, como a poda de árvores, na crise envolvendo a Enel fica patente, de um lado, que a entrega desses serviços à iniciativa privada deixa a população e a economia vulneráveis aos humores e à mera busca pelo lucro por parte das prestadoras do serviço.
De outro, mostra também a ineficiência das agências criadas nos anos 1990, no auge do neoliberalismo, quando a venda do patrimônio público era defendida como a panaceia para todos os males da economia nacional.
O novo caos na cidade patrocinado pela empresa italiana — que levou a concessão da Eletropaulo em 2018 — teve início com uma forte tempestade que caiu sobre o estado na sexta-feira (11), deixando sete mortos na Grande São Paulo. Na capital e Região Metropolitana, mais de três milhões de pessoas ficaram sem energia elétrica por vários dias. Nesta quinta-feira (17), seis dias após a tempestade, a Enel informou que o serviço teria sido restabelecido para a grande maioria dos atingidos, faltando cerca de 36 mil clientes.
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Não é a primeira vez que a demora no restabelecimento da energia acontece por parte da empresa. Em novembro de 2023, cerca de 3,7 milhões de pessoas ficaram sem luz após fortes chuvas na região metropolitana de São Paulo.Da mesma forma, muita gente teve de esperar até seis dias para ter a situação normalizada. E em março, moradores do centro da capital paulista, inclusive o hospital Santa Casa, ficarem sem luz. No Ceará, onde a Enel também atua, da mesma forma sobram problemas.
Mas, para além do debate em torno da privatização em si — que, via de regra, termina com serviços mal prestados e encarecidos e com trabalhadores precarizados —, vem ganhando destaque o papel que a agência reguladora do setor deveria exercer para evitar que situações como essa ocorram.
Reação ao descaso
Conforme noticiou o blog do jornalista Valdo Cruz no G1, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva mostrou-se irritado com a situação enfrentada por São Paulo e, em especial, com a atuação da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).
Um dos problemas que o presidente teria levantado junto a ministros está na nomeação dos diretores da agência, que hoje é feita de maneira a que os seus mandatos não coincidam com o do presidente da República. A direção que conduz a Aneel hoje foi escolhida no governo de Jair Bolsonaro.
Ao falar sobre o tema nesta quarta-feira (16), em entrevista coletiva, o ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira, sinalizou que, ao que tudo indica, a agência regulatória foi omissa, o que permitiu à concessionária prestar um mau serviço.
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Ele explicou que o governo federal não pode agir diretamente sobre a Enel sem o “devido processo legal”, sob pena de ser desautorizado por força de liminar, e que esse processo já deveria ter sido encaminhado pela agência reguladora. “A Aneel se omitiu em relação à abertura desse processo”, afirmou. “E nós determinamos que isso fosse feito no ano passado”, completou o ministro, apontando ainda a defasagem do modelo das agências.
Além disso, Silveira também disse não acreditar “nesse papo de autonomia. ‘Tem que ter mandato porque tem que ser autônomo, porque tem que fazer o que quer’. Isso é papo furado, porque todo mundo tem que ter autonomia”, declarou.
Silveira defende um modelo similar ao da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), estatal de pesquisa do governo, onde os diretores são indicados pelo ministério e eleitos pelo Conselho de Administração da estatal, no qual o governo tem maioria — um sistema similar ao da Petrobras.
Órgãos de controle também estão acompanhando o caso. O presidente Lula determinou que seja feita uma investigação para apurar as responsabilidades. Nesta quinta-feira (17), foi noticiado que a Controladoria-Geral da União (CGU) abriu uma investigação sobre dirigentes da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).
O ministro da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias, disse que o governo está considerando a possibilidade de propor uma ação de dano moral coletivo contra a Enel e que a judicialização seria uma medida adicional à aplicação de multas. Há também a possibilidade de quebra de contrato por falta de cumprimento dos termos estabelecidos por parte da concessionária, o que, no entanto, não é um processo simples.
No caso de ser levada adiante, existe a hipótese de encampação, quando a União decide retomar os serviços antes do término do contrato, com pagamento de indenização à concessionária. Há ainda a alternativa da chamada caducidade, que é a extinção do contrato em caso de descumprimento grave das obrigações contratuais pela empresa.
Segundo explicou à BBC Brasil a professora de Direito Administrativo da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito SP), Vera Monteiro, a extinção do contrato pode ser feita por um decreto do presidente da República, no entanto, para isso acontecer, “ele precisa ter embasamento em um processo administrativo sancionatório, que recomendou esta extinção. Ou seja, o contrato não é interrompido automaticamente e de forma rápida.”
Agências reguladoras
As agências reguladoras começaram a ser discutidas nos anos 1990, em meio à onda de privatizações que marcaram o período. A primeira a ser criada foi a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), em 1997, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.
A Aneel também é de 1997 e tem como principais atribuições, entre outras, as de regular a geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica; fiscalizar, diretamente ou mediante convênios com órgãos estaduais, as concessões, as permissões e os serviços de energia elétrica; e implementar as políticas e diretrizes do governo federal relativas à exploração da energia elétrica e ao aproveitamento dos potenciais hidráulicos.
Conforme explica trabalho de Alvaro Augusto Pereira Mesquita, que foi superintendente da Aneel, as agências são “órgãos criados por leis específicas na condição de autarquias ditas especiais, dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial um pouco mais amplas do que as demais autarquias”.
Ele acrescenta que as agências reguladoras “foram idealizadas para atuar num ponto equidistante em relação aos interesses dos usuários, dos prestadores dos serviços concedidos e do próprio Poder Executivo, de forma a evitar eventuais pressões conjunturais, principalmente quando as empresas estatais convivam com empresas privadas na prestação do serviço público, como acontece nos setores de energia elétrica, petróleo e gás”.
Porém, ao que parece, as agências têm se mostrado pouco sensíveis ao poder público e à população e pouco reguladoras de fato. “Ano que vem, faz 30 anos que a primeira distribuidora foi privatizada, que foi a distribuidora do Espírito Santo. Já é tempo suficiente para a gente fazer uma avaliação desse modelo, se deu certo ou se não deu. E eu acho que está mais do que provado que ele não tem funcionado”, destacou, à Agência Brasil, o engenheiro eletricista Ikaro Chaves.
Na avaliação de Eduardo Anunciato (Chicão), presidente do Sindicato dos Eletricitários de São Paulo, “a Aneel não funciona”. Segundo o dirigente, seus membros vivem “num mundo paralelo à realidade do povo brasileiro e se baseiam nos dados oferecidos pelas empresas, porque eles não têm fiscais suficientes para analisar as redes. Então, é a raposa cuidando do galinheiro”.