A Leci antirracista sempre foi muito atual e contundente

São 80 anos de opiniões fortes e denúncias consistentes sobre o racismo em músicas e projetos

Show do grupo amapanse Senzalas, em São Paulo, realizado no Tom Jazz no dia 12 de março de 2015, com participação especial de Leci Brandão (CC-BY-SA) Fora do Eixo

Algumas marcas da Leci Brandão aparecem no palco, outras no parlamento e outras no cotidiano da vida. A luta contra o racismo atravessa todos estes âmbitos da vida pública e privada da mulher negra Leci.

Deste lugar de fala, vem o estigma que marcou sua carreira musical como “cantora e compositora de protesto”. Leci diz que esta qualidade que a definia e diferenciava de muitos sambistas era mencionada por muitos como algo negativo. O nariz torcido vinha acompanhado de uma impaciência contra “temas sérios e pesados”.

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O estigma contra o protesto, o racismo contra a música negra

Ela disse que isso só amainou, conforme o tempo passou e ela compôs mais músicas de amor, cantando com um sorriso no rosto, em vez da feição cansada de guerra ou da expressão de valentia. Ainda assim, Leci nunca deixa de dar seu toque de protesto até numa canção romântica, como a mulher que prepara o café antes do homem acordar, mas diz que “se houver aquela greve, participe sem ter medo”.

Ainda hoje, esse estigma do mercado fonográfico continua com outros artistas que também tratam das mazelas da sociedade racista, da violência policial, do abandono das favelas pelo poder público, da indiferença com o preconceito cotidiano, do ódio contra a religião de matriz africana, da falta de oportunidades, dos salários menores, do encarceramento em massa e genocídio da juventude negra, da vida de medo que toda mãe tem quando seu filho sai de casa.

Por isso, mesmo, Leci não exita em apoiar e fazer feat (colaboração) com artistas de hip-hop ou iniciantes. Ela também é a primeira a reagir com contundência, quando Ed Motta desqualifica o rap e o hip-hop com um viés elitista. “Fã de hip hop é burro, sem excessão”, disse o cantor negro, que ignora os estigmas racistas que também nasceram com o jazz, o samba, o R&B, o rock, o funk e o soul. “Quem ataca hip-hop é elitista”; “Ouvir e fazer hip-hop é resistência”, “Quem acha que representa a cultura preta e não reconhece o hip-hop, está de chapéu atolado”, reagiu a sambista.

Retratos do racismo cotidiano

Na música, Leci retratou o líder do morro, Zé do Caroço, alertando a favela inteira da brutalidade do estado. Nessa que é das músicas mais gravadas da MPB, Leci via no Zé que “bota a boca no mundo e faz um discurso profundo para ver o bem da favela”, que estava nascendo um novo líder. Não à toa, essa música não foi gravada durante a ditadura e precisou estar na boca do povo, conforme Leci cantava nos shows, para ganhar o direito de ser registrada em estúdio, anos depois.

Deixa, Deixa é um libelo comovente de tudo que se proíbe ao jovem, restringindo-o ao espaço da revolta e da inconsequência que afeta a sociedade como um todo: Deixa ele escrever, deixa discursar, deixa ele votar, Deixa ele transar tudo de onde vier, Deixa ele assumir, deixa ele transar, deixa ele amar, Deixa ele escrever, deixa ele contar, deixa discursar, Deixa ele beber, deixa ele fumar, deixa ele voar. “É melhor do que ele sacar de uma arma pra nos matar”, conclui cada estrofe da canção.

Outra canção icônica na voz de Leci Brandão, composta por Jorge Aragão, aborda o racismo típico do elitismo mesquinho e racista das cidades brasileiras: “Elevador é quase um templo/ Exemplo pra minar teu sono/Sai desse compromisso/ Não vai no de serviço/Se o social tem dono, não vai”. Talvez seja incompreensível para as novas gerações que pessoas negras não pudessem escolher o elevador onde possa entrar, até alguns anos atrás.

O trabalhador como protagonista e a fé

Anjo da Guarda, é o nome da canção que qualifica os professores como protetores das crianças. “Na sala de aula é que se muda uma nação/Na sala de aula não há idade, nem cor/Por isso aceite e respeite o meu professor”, diz ela pedindo aplausos para a categoria de trabalhadores da educação.

A ritualidade do candomblé e da religiosidade de matriz africana estão sempre presentes nas canções. As preces aos orixás comparecem na esposa que espera o pescador voltar do mar, depois da tempestade.

Mas aqui é preciso olhar também para a carreira no parlamento, para onde Leci levou todos estes temas às vias de fato. Mais do que apenas denunciar, ela quis fazer algo de concreto. Elegeu-se e defendeu, sem vacilar, os pretos, a favela, a cultura negra e seu direito de cultuar seus orixás.

Defesas de uma vida toda em plenário

E não só. Defendeu em projetos de lei: idosos, aposentados, pessoas com deficiência, categorias profissionais, trabalhadores precarizados, mulheres, estudantes, blocos de carnaval, o samba e seus instrumentos musicais, centros de umbanda, o patrimônio histórico negro, os trabalhadores da cultura, o hip hop, a dança breaking, a capoeira, a favela, LGBT+, o meio ambiente, o turismo. Para falar só dos projetos protocolados no último ano.

Leci, a deputada, está alerta às novas tecnologias de segurança pública, com seus vieses racistas. As câmeras de reconhecimento facial, que só suspeitam de pessoas negras, entrou para o radar de seu mandato. Ela cobrou atenção à doença falciforme, anemia que atinge principalmente pessoas negras. E luta por cotas na administração pública para pessoas negras, com deficiência, travestis e transexuais.
Durante a pandemia, Leci atuou para defender os direitos de estudantes de escolas privadas, o acesso ao álcool gel e o fornecimento de serviços públicos para quem não podia pagar. Lutou contra os despejos. A lista é interminável, mas uma olhada rápida pelas lutas de Leci no parlamento não deixam dúvida sobre o seu lado e suas obsessões de uma vida toda.

Com seu jeitinho solene e respeitoso, sem acirrar disputas partidárias desnecessárias e fugindo de discussões estéreis e ideologizadas, devagar ela vai conquistando deputados para votar em seus projetos de lei. Nada lhe deixa mais contente e satisfeita do que ver uma dessas leis aprovadas na Assembleia Legislativa, mudando vidas por todo o estado de São Paulo.

Esta é Leci, com sua trajetória coerente, sem grandes alardes, mas uma conquista atrás da outra, quebrando barreiras que pareciam intransponíveis em outros tempos. Hoje, o que parece natural e indispensável na vida e na arte, é uma conquista de longa luta vencida pelo pioneirismo de gente como ela. Muitos nem sabem, por isso é sempre bom lembrar.

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