A luta contra o fascismo de todos os dias

Um relato visceral de resistência, indignação e confronto com o fascismo cotidiano, onde a luta pela democracia se torna um dever constante e inadiável.

Foto: Guilherme Santos/Reprodução/BDF-PE

Foi nestes dias. Depois da vitória de Lula para a presidência, recebi um surpreendente choque em minha vida; na tarde 7 de agosto, caminhava com a minha esposa pela calçada em Olinda, quando ouvi barulho, músicas infernais. Era uma carreata de Bolsonaro! O quê?! Era o próprio seguido por “patriotas” de camisa da seleção brasileira, aos gritos, aos gritos, aos gritos.

Eu não tive escolha. Não poderia ter tido escolha. O mais zen, o mais ponderado socialista, não pode caminhar imune, de surpresa, diante de uma carreta do fascista ou fascistas em passeata. Vocês me perdoem, mas perdi a gentileza, a maldita boa educação. E respondi aos sons da tarde que estrondavam;

– Filho da puta! (E mais alto) Filho da puta!

Isso foi o começo da conversa. A emoção foi tomando conta de mim, uma indignação sem tamanho, diante daquela invasão do terreno da pátria da humanidade. E continuei. E bradei mais alto, quando passei por um pelotão de soldados da PM:

– Aqui é terra de Lula! Fascista não se cria!

Eles me ameaçaram com os olhos, com as caras de ataque, puseram a mão nas armas, mas estudantes me salvaram de uma bárbara agressão. Mocinhas e rapazes, adolescentes, em um colégio em frente ao pelotão, me aplaudiram. Deles vinha uma solidariedade de irmãos, fraternos até onde pode ir à fraternidade. Aquilo amenizou, mas não me dei conta de que eu era também uma agressão até sem palavras à carreta, eu não me dava conta de que estava com uma camisa do Sport, vermelha. Daquelas que na frente possuem estrelas, e atrás o nome do Sport. As estrelas são do Sport na série A. Mas os ignorantes, quando a veem, interpretam logo; é do PT.

Então passei a ser perseguido aos gritos:

– Ladrão! (Eu me virei) Luladrão! Lulaladrão!

Sabe-se que os bolsonaristas não têm argumentos. Têm só intestinos. Eles não refletem:

– Luladrão!

Não lembro ao certo o que respondi – quem sabe ao certo como agiu num ato de paixão? -, mas devo ter respondido:

– Bolsonaro é assassino! Matou o povo na pandemia. Genocida!

Então os bolsonaristas, na maioria idosos, não donos de idade respeitável, mas da idade que gera uma odiosa demência, responderam à sua maneira. Esclarecedora, mas nunca esclarecida:

– Lula é terrorista!

Essa é uma palavra que para mim é uma pedra de toque, é clara e um chamamento. Tenho escrito romances sobre a memória da ditadura, uma denúncia dos crimes da ditadura, do seu terror sobre jovens do Brasil.

E me virei para os que me perseguiam:

– O quê?!

E continuaram:

– Lula é terrorista!

E preparei o bote:

– Lula é terrorista?

– Sim!

A minha resposta foi levantar os braços:

– Então viva o terrorismo!

A minha esposa tentava me acalmar, numa tarefa impossível. Até porque ela própria estava agitada. E tomava a minha frente contra a turba:

– Viva Lula!

E fazia sinais do L de Lua, um L que eu transformava em um dedo só, do médio, para Bolsonaro.

Ela gritava;

– Lula é meu presidente!

E vinham pra cima dela. Então foi a minha vez de acalmá-la, pedir-lhe calma, ponderação, serenidade, eu, o calmo, sereno e ponderado. Mas para ser calmo, zen, a gente tem que respirar fundo primeiro, não perder o fôlego. E eu só queria uma cachaça ou um pouco d’água, na pior das hipóteses. Era incrível. Me sentia ferido nos domínios do que julgava sagrado. Olinda, que é isso?! Eu precisava ter uma inspiração profunda. Mas só depois de acabar com aquele pesadelo.

Agora, em 23 de agosto, a respirar melhor tento refletir. A primeira coisa sensata é: todo militante democrata, todo socialista, tem um caso pessoal contra os fascistas.    

Na volta para casa, enquanto via os grupos de senhores e senhoras de amarelo – o que era aquilo, estavam todos cobertos de fezes de bebê? -, pude sentir que eram todos bons pais, avós, aposentados cidadãos de bem, do bem da classe média. Agora os compreendo. Eles não são todos fascistas. Nem todos adoram a suástica. Embora existam entre eles ardorosos assassinos de direita. Mas não todos. O problema é que essa boa gente, todos boa gente, apoiam um código moral atrasado. Todos dizem defender a família. Aquela tradicional, pai, mãe, filhos, modelo da sagrada família que está no céu.

Neles, entre eles, há uma sobrevivência fóssil de valores morais que vão contra a própria experiência. Muitos deles têm parentes homossexuais, mas nisso não veem uma luz para a diversidade, para tudo que é humano. Muitos deles são descendentes de negros, são mestiços, mas acham natural o racismo contra as pessoas de pele mais escura. Cospem na memória da sua origem.   

Percebo que o moralismo deles é uma rigorosa e severa perversão. Se pudessem, trepariam com a Santíssima Virgem Maria. Mas como tal coisa é impossível, pelo menos em seres de carne, buscam satisfazer o desejo frustrado em corpos mais puros, mais inocentes. Eles vão até à pedofilia, que só entendem uma perversão quando o sexo é feito em corpinhos de bebê. Mas crianças a partir de 7 anos, não. “Já conhecem a safadeza”, falam. E discursam a favor da família, da moral e da pátria.

Em tudo fedem a hipocrisia. Uma rígida hipocrisia, que fala mais alto que falo sem força. Mas são perigosos, porque matam e promovem a destruição de vidas, quando a gente vê o caso de professoras no grande Recife, que obrigaram uma criança, adotada por duas mães, ser obrigada a uma cerimônia do Dia dos Pais, e se comprazerem em ver a menina aos prantos, isso revolta, isso mostra a urgência da civilização. Quando a gente vê a tal da pastora Collins apresentar projeto de lei contra atletas trans, sabemos que nossa luta hoje é sem quartel e sem trégua. Esse horror da direita não pode nem deve prosperar. Temos que sair dos nossos guetos humanizados.  

Daí que a nossa resistência deve ser um dever e prazer ao mesmo tempo. Temos todos a obrigação de espalhar a civilização de todas as formas, de todas as maneiras, Na arte, com arte, na ciência, com ciência, na política partidária e com política, e fora dos partidos também.. Escritores, artistas, professores, cientistas, sindicalistas militantes organizados, jornalistas, músicos e compositores: estamos todos convocados. A luta contra o fascismo é contínua. sem trégua, porque a peste do fascismo não morreu. Se não pudermos todos escrever romances, reportagens, vídeos, músicas, posts, escrevamos panfletos. Vamos distribuir nosso pensamento impresso em bandeiras, papel, imagens e alma. A guerra não nos dá um minuto de paz.

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