Brasil perdeu mais de 15 mil crianças e adolescentes de forma violenta em 3 anos

Alto número de mortes violentas intencionais ocorreu entre 2021 e 2023; 16% foram causadas pelas polícias. No mesmo período, 165 mil foram vítimas de violência sexual

Foto: Mídia Ninja

Quinze mil mortes violentas e 165 mil vítimas de crimes sexuais em três anos. Números como esses explicitam o grau de brutalidade de uma sociedade. E se tornam ainda mais dramáticos quando é revelado quais são os alvos de tamanha barbárie: crianças e adolescentes brasileiros, entre zero e 19 anos. 

Os números traduzem a falência da sociedade —  o que inclui instituições como família e religião — e do Estado brasileiro — onde estão os Três Poderes das três esferas federativas — no cuidado com seus mais jovens cidadãos. 

Esses dados fazem parte do relatório “Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil”, lançado nesta terça-feira (13) pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A investigação, feita a partir de dados das secretarias estaduais de Segurança Pública, abarca os anos de 2021 a 2023.

No caso das Mortes Violentas Intencionais (MVI), o relatório aponta que no período houve 15.101 vítimas do zero aos 19 anos. A maior parte dessas ocorrências — 91,6%, ou 13.829 — se deu entre os 15 e os 19 anos; 90% das crianças e adolescentes de zero a 19 anos vitimadas são meninos e 82,9% são negros.

“Apesar de não ser nenhuma novidade, é assustador que, em 2023, para cada 100 mil habitantes no país entre zero e 19 anos, do sexo masculino e de cor negra, 18,2 são assassinados, enquanto a taxa de mortalidade para o mesmo grupo entre brancos seja de 4,1 por 100 mil”, alerta o estudo. 

Isso significa dizer, continua, “que o risco relativo de um adolescente negro, do sexo masculino, ser assassinado no Brasil é 4,4 vezes superior à de um adolescente branco do sexo masculino. Os dados indicam que o marcador racial exerce fator determinante na dinâmica das mortes violentas de adolescentes no Brasil, com mais impacto inclusive do que o gênero. Em três anos foram pelo menos 9.328 crianças e adolescentes negros assassinados no país”. 

Porém, também é cruel o quadro relativo à primeira infância negra: 64,3% das vítimas de até quatro anos eram negras e 32,9% das vítimas eram brancas. 

Outro dado alarmante é que houve crescimento nos assassinatos especificamente de crianças.  De zero aos quatro anos, o aumento foi de 20% entre 2021 (103) e 2023 (124); dos cinco aos nove anos, o salto foi de 49% — saindo de 49 em 2021 para 73 no ano passado. 

Também cabe destacar que nesses três anos, do total de mortes violentas, 2.427 (16%) foram causadas pela ação das forças estatais de segurança, constituindo a segunda causa de mortes violentas de adolescentes. 

“A análise da taxa de mortalidade por faixa etária revela o quanto a interação entre adolescentes de 15 a 19 anos com a polícia tem se mostrado violenta. Enquanto a taxa de letalidade provocada pelas polícias entre habitantes com idade superior a 19 anos é de 2,8 mortes por 100 mil, no grupo etário de 15 a 19 anos a taxa chega a 6,0 mortes por 100 mil habitantes, 113,9% superior à taxa verificada entre adultos”, destaca o relatório. 

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Na avaliação de Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, “é importante que haja um protocolo mais claro das abordagens e do uso da força pelas polícias, tendo em vista que os principais alvos são os jovens pretos e pobres da periferia”. 

Armas de fogo

Vale ainda ressaltar o papel deplorável das armas de fogo, cuja circulação explodiu a partir do governo de Jair Bolsonaro (PL), nesse cenário de barbárie infanto-juvenil. 

Se por um lado, pouco mais de 20% das mortes com vítimas de até quatro anos decorreram de agressão — o que, segundo o estudo, é um forte indício de que são casos de maus-tratos, normalmente ocorridos no ambiente familiar —, por outro 27% dos crimes nessa mesma faixa etária são cometidos com o uso de arma de fogo, percentual que vai crescendo à medida em que aumenta a idade da vítima. 

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Assim, conclui a pesquisa, “não é desprezível o número de crianças que são mortas por arma de fogo de modo intencional dentro das suas residências, o que reforça a importância do controle do uso de armamento bélico por civis. Entre as vítimas que possuem entre 15 e 19 anos, o principal instrumento utilizado é a arma de fogo, presente em 86,3% dos casos”. Tais ocorrências estão mais diretamente ligadas à violência urbana e à ação de organizações criminosas e não ao ambiente familiar, como ocorre com os mais jovens. 

Cabe ressaltar que nessa faixa etária, houve 14.581 vítimas fatais entre 2021 e 2023 — em que pese ser um número alarmante, foi constatada queda de 8,4% no período. “No entanto, não se pode desconsiderar que todos os anos mais de 200 meninos e meninas entre 10 e 14 anos são mortos intencionalmente em todo o país”, pondera o relatório. 

Violência sexual 

Voltando ao dado trazido no início, o Brasil teve ao menos 164.199 vítimas de estupro e estupro de vulnerável (menores de 14 anos ou sem discernimento para a prática do ato). E, se por um lado as meninas compõem a menor fatia das mortes violentas intencionais — 1.508, número ainda assim muitíssimo alto —, elas são a esmagadora maioria das vítimas de crimes sexuais: 87,3%. Nesse universo, 48,3% têm entre dez e 14 anos e 52,8% são negras. 

Conforme aponta o Panorama, a taxa de estupros por 100 mil habitantes “evidencia um cenário em que o gênero da vítima é o principal fator de risco: são 131 vítimas de estupro do sexo feminino para grupo de 100 mil na faixa etária de zero a 19 anos”. Considerando esse cenário, uma menina de até 19 anos tem sete vezes mais chance de ser vítima de estupro do que um menino na mesma faixa etária.

Para piorar, os pesquisadores ponderam que esse número pode ser ainda maior, dada a alta possibilidade de subnotificação. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o percentual de casos de estupros que chegam ao conhecimento das polícias foi de apenas 8,5% em 2019. 

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A pesquisa confirma, ainda, outro dado que torna essa realidade ainda mais cruel: o fato de que a maioria dos abusadores é conhecida das vítimas — entre eles estão pais, tios e padrastos, entre outros. 

“Até os 9 anos, entre 84% e 86% dos crimes o autor é conhecido da vítima. Com meninas entre 15 e 19 anos, os autores desconhecidos chegam a 22%. Ou seja, ainda assim, são pessoas conhecidas as maiores responsáveis pelos crimes de estupro, mesmo entre adolescentes”, explica.

Além disso, o estudo pontua que o percentual de crimes praticados por conhecidos “é ainda maior do que aquele observado nas residências, o que pode indicar que mesmo a violência sexual contra criança e adolescente que ocorre em outros locais é desferida contra quem já possuía algum contato prévio com a vítima”. 

Importante recordar que é neste ambiente que, recentemente, parlamentares bolsonaristas — entre os quais boa parte compõe a “bancada da bíblia” — tentaram aprovar projeto de lei criminalizando vítimas de estupro que recorressem ao direito constitucionalmente garantido de abortar após a 22ª semana de gestação, equiparando o ato ao homicídio simples, com a possibilidade de pena de prisão. 

Os dados do Panorama reforçam que as principais vítimas dessa insanidade seriam as meninas. Afinal, entre 2021 e 2023, mais de 117 mil delas, com zero a 14 anos, foram vítimas de estupro no Brasil — em média, 39 mil por ano. 

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E, segundo dados do DataSUS trazidos pelo relatório, em 2021, foram 17.456 filhos nascidos de mães de 10 a 14 anos. No ano seguinte, foram 14.293.  “Ou seja, 31.749 meninas com idade entre 10 e 14 anos, faixa etária em que qualquer relação sexual é considerada estupro, tiveram filhos nos dois anos analisados”, conclui. 

Para Samira Bueno, “a sociedade precisa compreender que a violência sexual ocorre dentro das casas de milhões de brasileiros, afetando meninos e meninas que muitas vezes sequer conseguem identificar esse crime. O Estado precisa investir em educação sexual e oferecer espaços para proteger essas crianças e defendê-las de seus agressores”.

Recomendações

Além de fazer uma radiografia da realidade brasileira, o Panorama também traz recomendações — voltadas à sociedade e aos governos — para o enfrentamento desse cenário. 

No caso da violência sexual, vale destacar a recomendação de que “não se pode normalizar as mortes violentas e a violência sexual, é preciso enfrentar esses crimes. Também é fundamental investir em diagnósticos robustos e representativos que levem à compreensão do que motiva a prática da violência sexual e letal, sobretudo no ambiente doméstico, e desenhar estratégias de mudança de comportamento e de normas sociais que enderecem esses motivadores”. 

Outro apontamento que merece ser salientado é a necessidade urgente de haver o controle do uso da força pelas polícias — e neste sentido, ganha ainda mais relevância a adoção das câmeras corporais, bem como estabelecer e trabalhar com as polícias protocolos, treinamentos e práticas voltadas à proteção de meninas e meninos. 

O relatório defende ainda o controle do uso de armamento por civis; o enfrentamento ao racismo estrutural e ao fenômeno da violência doméstica contra crianças e o combate às normas restritivas e discriminatórias de gênero, entre outras medidas.