Chico Buarque na ditadura em 1972

No Recife de 1972, jovens debatem a importância cultural e política de Chico Buarque e Caetano Veloso, refletindo as divisões e esperanças de uma geração sob a ditadura.

Chico Buarque na Passeata dos Cem Mil (1968) | Foto: Memorial da Democracia/reprodução

Hoje, quando completa 80 anos de idade, Chico Buarque não é mais motivo da discussão sobre “quem é maior, Chico Buarque ou Caetano Veloso”. Eles próprios não se ocupavam disso, eles próprios amadureceram muito como pessoas e artistas, para nossa felicidade. Cada um deles poderia dizer que segue “rumo ao futuro, certo do meu coração mais puro”, como canta Paulinho da Viola  em um samba. Mas no Recife em 1972, e em todo o Brasil do tempo do ditadura Médici, gostar de Caetano ou Chico implicava uma opção política, foquismo ou conscientização da massa.

No meu romance “A mais longa duração da juventude”, que narra a formação dos jovens na ditadura, personagens discutem essa encruzilhada de opções numa mesa do Bar Aroeira, no Pátio de São Pedro, no Recife. Estamos numa sexta-feira do pré-carnaval de 1972.     

“Olho em volta e percebo que nas mesas vizinhas se faz um silêncio. Todos nos escutam, concluo. Assuntos de música popular, no Brasil, são os que mais despertam interesse depois do futebol. Mas na ditadura falar na altura da voz de Vargas, usando a palavra ‘revolução’, é demais. Nelinha lhe toca o braço e sussurra ‘cuidado’. Ele sorri:

– Tranquilo, minha santa. Estou falando de cultura.

– Estamos falando sobre música, não tem problema – Alberto fala.

– E tudo é revolucionário, não é? – Vargas completa. – O cinema de Glauber é revolucionário, a juventude é revolucionária, tudo é revolucionário. Menos Chico Buarque de Holanda.

Todos riem. Ocorre o que às vezes se chama brincar com o perigo. Zombar do abismo. Mas na hora o que me ocorre é o cometimento de uma injustiça.

– Eu não acho – falo. – Chico, para mim, é o melhor compositor de música popular brasileira hoje. Ele tem uma poesia que não tem Caetano. Chico é de fazer música, não é de dar espetáculo. Caetano é escandaloso, entende?

– A revolução é um escândalo! – Vargas quase grita. Alberto ri, Nelinha sorri para o companheiro, que se vê estimulado. – Chico é o compositor de Carolina, Januária na janela. É o poeta dos olhos verdes das meninas. Isso é revolucionário? Preste atenção: a música de Chico é o passado. Ele é um compositor de 1960 pra trás.

– Olhe… – eu queria dizer, se compreendesse então, que Chico ligava a tradição à música desses dias, assim como Paulinho da Viola fez essa ligação com o samba. Mas há um tempo em que possuímos o sentimento, mas não encontramos as palavras, que ainda não nos chegaram pela experiência. Então arquejo, como um náufrago, diante da catilinária. – Olhe, você quer poesia melhor que … – e tento cantarolar “se uma nunca tem sorriso, é pra melhor se reservar…” – que “a dor é tão velha que pode morrer”, hem? – E baixo a voz: – Chico é a esquerda do futuro.

– Ele não é nem do presente – Vargas responde. – Que dirá do futuro… Preste atenção, muita atenção: “sei que um dia vou morrer de susto, de bala ou vício”. Escutou? Esta é a música de agora, dos jovens revolucionários de hoje.

– Isso não é de Caetano. É de Gil, Torquato e Capinam – falo.

De Gil? – Vargas responde. – Não importa. Está no disco de Caetano. Ele fez da música um hino revolucionário. Isso é o que importa.

– Hum, sei  – falo, mas ainda não sei. Vou do rosto de Vargas até Nelinha, sigo para Alberto, retorno a Vargas. – É bom também – admito, a fórceps.        

Olho para Vargas e me pergunto “será bom mesmo?”, e o que vem a ser o conteúdo da pergunta eu não me digo nem quero ver. Se eu soubesse na noite o que soube depois, eu diria ‘esta música é o anúncio da morte’. Esse ritmo alucinante, à caribe, é enganoso e leviano. Pregar a revolução com palavras e música é uma coisa, Vargas. Fazer a revolução é outra coisa, eu diria, se soubesse em 1972 os acontecimentos de 1973. Mas ainda ali, percebo agora, eu seria injusto até a estreiteza e maledicência. Então os artistas não podem expressar o sentimento que corre na gente? Então é justo acusar de leviano, de traidor da revolução, quem escrever como homem poético o homem prático? Só a raiva, no que tem de embrutecedora, verá a canção da luta armada no Brasil dessa maneira. Se assim fosse justo e real, o que dizer de Lorca, de Víctor Jara, até mesmo de Neruda? Então eu, que de nada sabia, escuto Vargas cantarolar ‘estou aqui de passagem, sei que adiante um dia vou morrer de susto, de bala ou vício’. E para ser mais preciso, em meio à intuição do horror, se põem acordes do frevo lá na Avenida Dantas Barreto. Meus olhos correm do rosto de Vargas, vão até a barriga de Nelinha, tão desamparada me parece na tormenta. Me dá uma vontade à beira do irreprimível de acariciar o fruto que virá no temporal. Vargas, que é vigilante insone da mulher, flagra o meu olhar nesse instante. Mas o macho vigia da sua fêmea é derrubado pela humanidade que pressente nessa ternura solidária. Assim sei, assim soube, porque a sua voz baixa o tom, e me fala como a um camarada, um irmão de jornada:

– Companheiro, desculpe. Pensamos diferente, mas você é um companheiro. Estamos juntos, não importa o que fazem de nós. O companheiro me desculpe.

– Que é isso, rapaz? Não foi nada. – Comovido pela gravidez de Nelinha e pelo descobrimento do Vargas que vem, fico embargado. E como sempre, tento corrigir a emoção com uma frase que me salve:  – Eu também gosto de Caetano Veloso.

– Eu também gosto de Chico Buarque de Holanda. – Vargas me responde e sorri: – Que revolucionário.

– Sim – falo – Mas não na forma, na altura de um Caetano.

Todos gargalhamos. Então Alberto puxa desafinado, à sua maneira desafinado, ‘Apesar de você’. E mesmo com os sons do frevo que se aproxima, cantamos juntos ‘Amanhã vai ser outro dia, amanhã vai ser outro dia’.

Se em algum lugar houver um minuto de fraternidade, no Pátio de São Pedro houve esse instante. Estávamos juntos desde a proteção da gravidez de Nelinha”.

Autor