O pré-marxismo de K. Saito e a aporia japonesa

Análise ao ecossocialismo de Kohei Saito, destaca contribuições de Marx e Engels sobre capitalismo, natureza e desenvolvimento das forças produtivas versus decrescimento econômico

Imagem: reprodução/laizquierdadiario

A nova – aparentemente sofisticada – vulgata da marxologia vem do Japão, com as teses de Kohei Saito. Seu “O ecossocialismo de Karl Marx” (2021 [2017]) [1] define logo sua pretensão gnosiológica, revelada no subtítulo do livro: “capitalismo, natureza e a crítica inacabada à economia política”. Trata-se, a rigor, de pré-marxismo cheirando intensamente a mofo. Naturalmente a crítica dele é que é “acabada”, portanto dogmática – um escárnio à teoria do conhecimento.

1.Ora, desde pronto, a humanidade sabe que Marx sequer concluiu o Livro 3 de “O capital”, deixando a árdua tarefa para outro genial pensador alemão, Friedrich Engels.

Engels, notadamente, fez um esforço titânico para montar o livro 3, porque a quantidade de papeis que o Marx deixou, os manuscritos, segundo seu próprio companheiro, “eram caóticos”. Uma parte do material era 1861-64, outra parte era 1867-1868, e lá pelos anos 1870, o Marx faz uma nova redação, uma nova versão do livro três. Engels fala da grande dificuldade, quando Marx adoeceu; o período de 1861-1864 foi da fundação da Primeira Internacional, e ele estava redigindo o livro três, simultaneamente ao livro dois. Marx precisou encabeçar a fundação da AIT (Associação Internacional dos trabalhadores).

Para a elaboração textual sobre a polêmica questão da queda da taxa de lucros, por exemplo, Engels consultou o Samuel Moore, “o destacado matemático de Cambridge”, que já tinha ajudado no livro dois. Consultou para fazer os cálculos matemáticos imensos que o Marx fazia pra tentar equacionar os grandes dilemas, principalmente dos problemas da lei da tendência da queda da taxa de lucro (LTQTL). Com os capítulos que tratam das “contra-tendências” à queda da taxa, no Livro 3, Marx explicita o conceito materialista e dialético de lei, como bem identificou Lênin:

A dialética materialista de Marx e de Engels contem, certamente um relativismo, mas não se reduz a ele, isto é, reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no sentido da negação da verdade objetiva, mas no sentido da condicionalidade histórica dos limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação a esta verdade”. [2]

Investindo contra os críticos fuleiros – e à sua moda -, o pesquisador alemão Michel Heinrich (MEGA2) e biógrafo de Marx, com certa razão, afirma que:

“Embora a obra de Marx tenha nos fornecido resultados importantes, temos que entendê-la principalmente como um programa de pesquisa inacabado: inacabado não no sentido banal de que a realidade é infinita e, portanto, qualquer pesquisa é inacabada, mas inacabada no nível categorial. [3]

2. Já afirmamos [4] que Domenico Losurdo impressiona ao localizar e criticar brilhantemente a ideia atualmente em voga do “decrescimento” (econômico) – para nós, também neomalthusiana -, concentrando-se numa tese nodal de sua elaboração: o decisivo desenvolvimento das forças produtivas. Eis o divisor de águas.

Losurdo chama a atenção para algo que passa despercebido ao olhar da grande maioria dos marxistas, sobretudo no Ocidente: a totalidade intrínseca entre ser humano x natureza em Marx. Algo que encerra um grande relevo de análise e construção de argumentos, conceitos e novos marcos teóricos no sentido de enfrentar o dogmatismo do ecologismo e da arbitrária separação entre ser humano x natureza.

Em Marx, e isso possui ênfase na obra de Losurdo, essa unidade e totalidade intrínseca nas relações entre ser-humano e natureza cria condições à própria superação do que se poderia chamar de esgotamento dos recursos naturais. Trata-se, portanto, de uma visão onde o progressismo é algo inerente ao desenvolvimento das forças produtivas e não seu contrário.

3. Afirme-se que a elevação da técnica às suas últimas consequências cria um recurso natural inesgotável ao processo de desenvolvimento. Esta possibilidade de um desenvolvimento sem precedentes das forças produtivas é resgatada por Losurdo ao retomar, especialmente, a genial antecipação de Marx contida nos Grundrisse sob a titulação de “Fragmento sobre as máquinas” [5].

Formidável, é ali que Marx apresenta também o conceito de “intelecto geral” (“general intellect”),[6] já identificando a tendência de autonomização da tecnologia da maquinaria, onde as “máquinas inteligentes”, a Inteligência artificial, a nanotecnologia, poderiam servir hoje claramente de exemplos. Ainda, escreveu Marx ali:

“A natureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, máquinas de fiar automáticas etc. Elas são produto da indústria humana; (…) Elas são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força do saber objetivada”. E mais adiante: “Há ainda outro aspecto em que o desenvolvimento do ‘capital fixo’[maquinaria] indica o grau de desenvolvimento da riqueza geral, ou o desenvolvimento do capital” (todos os grifos de Marx; p.589).

4. Reitere-se que o constructo teórico-epistemológico de Karl Marx se funda no materialismo dialético, que desenvolve uma nova e revolucionária interpretação da história a partir daí. O marxismo de Marx (de Engels e de Lênin), sua teoria, opera extremos esforços da inteligibilidade humana perseguindo “agarrar” o sempre rebelde movimento da matéria. Só o interpreta como dogma – a tal da crítica que deveria ser “acabada” – é quem subjetivamente o deseja. Entronizado na práxis política, orienta e organiza a ação transformadora. Esta teoria do conhecimento, caminha (estagna ou retrocede) conforme a dinâmica material das conexões internas do fenômeno: as contradições e sua acepção apreendida na totalidade; como iluminou Marx ao posfácio da 2ª edição alemã de “O capital”, distinguido – indelevelmente – o “oposto” de seu método, ao de G. Hegel.

Devastador, o método do qual irradia a configuração teórica de Marx não se presta a servir a devaneios subjetivistas e anticientíficos. Sim, Marx não só construiu a façanha de produzir uma síntese da economia política inglesa, da filosofia clássica alemã e do socialismo francês a cimentar os alicerces de sua obra, simultaneamente a uma fecunda e poderosa ruptura epistemológica.

A pretensão e o caráter paupérrimo dos novos (e velhos) críticos sempre foram de dar constrangimentos e pena. A acusação perene feita, particularmente aos comunistas, de esquerda “velha” vinha prosperando em nome de uma regressão ideológica e civilizatória à pré-modernidade. Um retorno ao pré-marxismo, agora alcunhado de teoria do “decrescimento econômico”.

De resto, a “estagnação secular” (ver gráfico abaixo do PIB 1975-2006), se existisse, existiria exatamente no país do professor Saito, sabidamente, desde a explosão da chamada “bolha imobiliária” em 1989-90. O que não evitou – nem poderia, pelas razões defendidas pelo autor, as desgraças do terremoto/acidente nuclear de Fukushima. O Japão persiste desde então em vigoroso “decrescimento econômico”, a aporia dos devaneios do marxólogo Saito.

5. O que acima foi dito é fartamente argumentado, noutros vieses, no longo artigo que segue, publicado na revista “Jacobin” (09/03/2024), dos pesquisadores Matt HUBER e Leigh PHILLIPS. O texto é uma crítica demolidora das teses da Saito, inobstante uma ou outra imprecisão, [7] o que em nada altera sua importância e seus objetivos: a refutação consistente da invenção desastrosa – e perniciosa – do “comunismo do decrescimento” do marxólogo nipônico.

Leia a íntegra do texto traduzido pela professora Mariana R. Venturini, logo após esse meu artigo publicado na Fundação Maurício Grabois.

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[1] Boitempo, 2021.

[2] Ver: “Materialismo e empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma filosofia reacionária”, V. I. Lénine, Lisboa, Avante!, p.103.

[3] A conclusão é tautológica, óbvio: qual construção categorial é “acabada”? Heinrich, um crítico da organização de Engels do Livro 3, diz chegar à conclusão que Marx terminara com “dúvidas”, sobre suas próprias pesquisas da LTQTL. Ver aqui.

[4] Ver: “Losurdo: comunismo, teoría e história”, Aloisio Sérgio BARROSO e Elias JABBOUR  em: Losurdo: comunismo, teoria e história

[5] O chamado “fragmento sobre as máquinas” pode ser encontrado no recém intitulado item “Capital fixo e desenvolvimento das forças produtivas da sociedade”, da edição dos “Grundisse”, da Boitempo (2011, Capítulo do capital, às páginas 578 a 592).

[6] Sobre o “general intellect”, L. BELLUZZO desvela que, “O predomínio do General Intellect e a acumulação de capital fictício ensejam a apropriação do tempo livre pelas camadas parasitárias. (…) Karl Marx tratou o capital a juros e o capital fictício como as formas mais desenvolvidas do capital. Mais desenvolvidas porque as mais abstratas”. Ver seu ótimo artigo “Capital fixo, General Intellect e a contradição em processo”, em: “Karl Marx: desbravar um mundo novo no novo século XXI. Artigos acerca da atualidade e vitalidade da teoria marxista”, Fundação Maurício Grabois/Anita Garibaldi, 2018, p. 240.

[7] A exemplo da ideia de que não existiu (ou não existe) a “aristocracia operária”, profundamente analisada por Engels (especialmente: https://www.marxists.org/archive/marx/works/1885/03/england-1845-1855.htm); por Lênin (“O imperialismo, etapa superior do capitalismo”, especialmente “Prefácio às edições francesa e alemã” (1920); ou em Hobsbawm (“O debate sobre a aristocracia operária”, no excelente: Mundos do trabalho, Paz e Terra, 1987, 2ª edição), quem utiliza a formulação “aristocracia do trabalho”, contornando a evidente constatação de Engels, no artigo acima, que o crescimento avassalador da economia britânica, e a diferenciação classista no trabalho deveu-se, sim, a  empresa colonial-imperialista da Grã-Bretanha.

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