Crise de identidade da Virada Cultural é desafio para próxima gestão paulistana
Evento que nasceu para revigorar o centro histórico da cidade com beleza e vida urbana, ficou tímido, fechado, vazio e caro para o contribuinte.
Publicado 20/05/2024 17:52 | Editado 20/05/2024 17:53
A Virada Cultural é motivo de polêmica desde o projeto inicial em sua primeira edição em 2005. Seu impacto na vida de São Paulo foi tão perceptível que não dava para ignorar as lacunas e problemas conceituais. A ideia anual de manter eventos culturais durante 24 horas seguidas era alvo de inúmeras dúvidas. Mas a última edição parece mostrar que a Prefeitura não evoluiu para resolver esses dilemas e acabou desperdiçando um momento que já foi mágico para a cidade.
O que mais se questionava em seu início era o tamanho do gasto de orçamento da Secretaria de Cultura para privilegiar basicamente a região central, com a continuidade do abandono cultural por toda a periferia da cidade. Mas era justamente para reverter o esvaziamento do belo centro da capital que se pretendia o alto investimento. Por um final de semana, ao menos, era possível vislumbrar como seria viver o centro histórico paulistano em todo o seu esplendor.
Famílias inteiras, vindas até do interior do estado, lotavam as ruas pela madrugada para admirar a arquitetura antiga e moderna, instalações artísticas e números circenses internacionais iluminando o céu da cidade. Espetáculos de balé aconteciam ao lado de rodas de samba, grupos de hip hop faziam rimas emoldurados pela Catedral da Sé, pertinho de onde ocorriam várias raves de música eletrônica. Em uma delas, uma multidão dançava em silêncio com fones de ouvido.
No Parque da Luz, o grupo francês Cie Carabosse espalhou fogo por todas as alamedas deslumbrando os visitantes, enquanto um coro e orquestra executavam a grandiosa Carmina Burana, de Carl Orff, bem ao lado da Estação da Luz. Na Praça Dom José Gaspar se revezavam pianistas, enquanto o Largo do Arouche foi se tornando um dos palcos mais disputados com música brega ou artistas muito populares de décadas atrás. Muitos aproveitavam a gratuidade para conhecer a opulência do Teatro Municipal.
Foram se somando espetáculos stand-up de comédia, parques de diversão para crianças, feiras de chefs de cozinha, jogos e até ringues de luta. Equipamentos públicos e privados se aliaram ao evento espalhando atividades pela cidade. O evento se tornou referência Brasil afora.
A descentralização
Quase vinte anos depois, o evento que já foi sinônimo de celebração cultural e ocupação urbana enfrenta desafios que comprometem sua essência e impacto. Vieram também os problemas de logística, e os tumultos envolvendo multidões na madrugada, em confronto com a polícia. Em 2017, o prefeito João Dória quis “transferir” a Virada para o Autódromo de Interlagos, o que significaria seu enterro simbólico. O conceito do evento volta ao debate público.
A decisão de descentralizar a Virada Cultural, dispersando atividades por toda a cidade, resultou em uma série de palcos vazios em locais como o Sambódromo do Anhembi e o Autódromo de Interlagos na gestão Dória. Artistas destacavam a falta de público e infraestrutura adequada. Embora a ideia de levar shows para as periferias não seja problemática em si, pelo contrário. No entanto, a execução falhou em manter a atração centralizada e vibrante no centro histórico de São Paulo.
Em 2022 e 2023, os palcos periféricos foram seguros e diversificados, mas o centro foi se esvaziando com atrações de menor impacto. A infraestrutura para descentralização dos shows também aumenta o custo do evento.
Impacto econômico e cultural
A Virada Cultural de 2024 custou quase R$ 60 milhões aos cofres públicos, um aumento de 30% em relação ao ano anterior. Comparativamente, as 20 Casas de Cultura da cidade receberam apenas R$ 19,28 milhões para manutenção e R$ 8,86 milhões para programação anual. Este contraste revela uma desproporção preocupante no investimento cultural. O orçamento total de 2005, agora paga um único cachê de artista sertanejo.
Apesar dos altos custos, o evento não conseguiu contribuir para a redução da insegurança no centro. Em 2022, a Virada foi marcada por arrastões, esfaqueamentos e furtos no Vale do Anhangabaú, que traumatizaram o público, enquanto a polícia se comportou de forma questionável. Em 2023, cercas metálicas e um aumento da segurança transformaram o local em um festival privado, afastando ainda mais a população e esvaziando o evento, especialmente à noite. As pessoas evitam circular pela cidade e ocupá-la, ficando entricheirados nas arenas de shows.
Curadoria artística e logística
A edição de 2024 viu artistas como Léo Santana, Leonardo e Pabllo Vittar, que são recorrentes em eventos abertos no Carnaval. A delícia de ir à Virada era justamente ver shows raros de artistas disputados e até internacionais. Ou ainda aqueles artistas com pouco espaço, que acabam realizando os shows mais comoventes. Houve reclamações de atrasos, cancelamentos sem aviso e som ruim em alguns shows. Uma falta de compromisso que vai desanimando o público para as próximas edições.
Apesar das críticas, a Virada ainda oferece uma plataforma para democratizar a arte, proporcionando acesso gratuito a shows que, de outra forma, seriam inacessíveis para muitos paulistanos. A iniciativa de doações para o povo gaúcho, afetado por uma catástrofe ambiental, demonstrou solidariedade e um lado positivo do evento.
A segurança continua sendo um desafio. Em 2024, houve relatos de brigas, tráfico de drogas e pequenos furtos, apesar do aumento no policiamento. A logística também foi um problema, com atrasos generalizados e problemas técnicos, como no show de Gloria Groove, onde o som ficou baixo durante toda a apresentação.
O futuro
Perto de completar 20 anos, a Virada Cultural enfrenta uma crise de identidade. A descentralização dos palcos, embora positiva em termos de alcance, dilui a essência do evento. A ocupação do centro, essencial para redefinir as relações da população com a cidade, foi comprometida. Quem assumir a gestão em 2025 tem um desafio para reinventar e domar seu gigantismo, sem perder o que tem de melhor. Mas, principalmente, tratar seu povo com mais carinho, pois a Virada fica mais triste e melancólica com tanta gente morando na rua e outros tantos convivendo de furtos e arrastões.
A Virada Cultural deveria ser o principal produto turístico de São Paulo, mas se transformou em um evento esvaziado e cercado por críticas. Para recuperar seu brilho, a gestão municipal precisa reavaliar a descentralização e focar na revitalização do centro, garantindo segurança e uma programação que movimente o público. Festivais com ingressos na faixa de um salário mínimo ou artistas consagrados em grandes arenas, também a preços europeus precisam encontrar um contraponto.
Enquanto isso, a cidade continua à sombra do que um dia foi um evento de referência mundial, esperando que a Virada de 2025 traga a reinvenção necessária para recuperar sua relevância cultural e social.