Argentinos marcham em defesa da educação pública, com amplo apoio social

Até mesmo políticos do partido de Milei, prefeitos, governadores e artistas se uniram a estudantes, professores contra cortes orçamentários das universidades.

Nesta terça-feira (23), por volta das 16 horas, as ruas de Buenos Aires estavam completamente tomadas por uma multidão diversa e engajada. A marcha universitária federal na cidade já era massiva, com o Congresso Nacional e seus arredores repletos de manifestantes. Diferentes colunas se misturavam nos cruzamentos, representando diversas instituições e organizações. Os manifestantes também se reuniram em Córdoba, Rosário, Chaco e em diversas cidades do país, além de lotarem ônibus para Buenos Aires.

A chamada para a marcha foi ampla e diversificada a partir de um medo inimaginável para os argentinos: o fim da universidade pública. Jovens da Escola Superior de Comércio Carlos Pellegrini, ligada à Universidade de Buenos Aires (UBA), marchavam lado a lado com estudantes, professores e membros da comunidade acadêmica de diversas áreas. A mensagem era clara: “A UBA não está à venda, a UBA está se defendendo”.

A reivindicação é pela atualização do orçamento, dos salários do pessoal docente e não docente, da deterioração do sistema científico e da suspensão das obras de infraestruturas científicas e universitárias em curso.

Leia também: Ressurge na Argentina conflito entre mães e avós da Praça de Maio contra o Governo
Sem financiamento, universidades argentinas estão à beira do colapso
Maior central sindical da Argentina anuncia greve geral contra Milei

O corte impactou também institutos e hospitais que dependem do orçamento universitário. As transferências de itens para hospitais universitários tiveram queda de 72%. As autoridades têm alertado que o impacto nos hospitais é ainda maior porque a inflação na saúde foi maior. Marcelo Melo, diretor do Hospital de Clínicas, que depende da UBA, destacou, por exemplo, que o aumento dos medicamentos que utilizam foi de 1000%.

Uma estudante de medicina carregava um cartaz com a frase: “Não seremos a geração que deixou a universidade pública morrer”.

Na Argentina existem 65 centros universitários estatais onde estuda a grande maioria dos estudantes desse nível no país. De acordo com o Anuário Estatístico da Secretaria de Políticas Universitárias 2022 do então Ministério da Educação (hoje Secretaria de Educação), último dado disponível, naquele ano havia 2.714.277 estudantes universitários em todo o país, dos quais 2.162.947 estudavam em universidades e faculdades estaduais (80%) e os restantes 551.330 (20%) em instituições privadas. Em 2022 existiam 122.769 estudantes universitários estrangeiros, dos quais 91.484 frequentavam centros públicos e 30.785 frequentavam centros privados.

Em um evento planejado para ocorrer por volta das 18 horas na Plaza de Mayo, um documento em defesa da educação pública seria lido, encerrando assim uma jornada marcante de mobilização e solidariedade em prol do ensino superior argentino.

Por todo o país

Com foco na formação de cientistas e tecnólogos, o Instituto Balseiro comemorou ontem 69 anos de sua criação em Bariloche em meio à “situação orçamental frágil”, uma condição que exemplifica a situação de instituições em todo o país.

“A falta de um orçamento aprovado para 2024 faz com que o orçamento de 2023 cubra apenas um terço do ano para a realização das atividades do Balseiro. Não poderemos funcionar num segundo ou terceiro trimestre com os recursos alocados”, alertou o diretor da instituição, Mariano Cantero.

Há dias, o conselho acadêmico do Balseiro decidiu juntar-se à marcha de hoje em defesa do ensino público. “Fazemos parte de Bariloche e ter mantido esta instituição como política de Estado, com claro foco no desenvolvimento da ciência e da tecnologia, fez da Comissão Nacional de Energia Atômica uma das mais importantes fábricas de empresas de tecnologia da Argentina”, afirmou Cantero.

Na importante cidade de Córdoba, a marcha em defesa das universidades públicas também foi massiva. Atravessou boa parte do centro da cidade, desde o Monumento à Reforma Universitária de 19 até o Pátio Olmos. Tanto o governador Martín Llaryora como o prefeito da capital, Daniel Passerini, se manifestaram em suas redes sociais a favor da reivindicação, assim como o senador nacional Luis Juez.

A presidente da Federação Universitária de Córdoba (FUC), Aylén Orellana, afirmou que, além do “corte orçamentário nas universidades, há um ajuste do qual os jovens não estão imunes. Estamos passando por uma crise no preço do aluguel, da cesta básica. A crise nacional se reflete no corpo discente.”

Milei em pânico

No Governo afirmam que a polêmica com as universidades está encerrada e que o apelo de hoje em todo o país “é uma marcha política”. O presidente Javier Milei desencadeou uma enxurrada de mensagens criticando o protesto e minimizando as reivindicações. Milei replicou mensagens de dirigentes e contas que publicam conteúdo de extrema-direita, argumentando contra uma suposta “politização” da medida de força e sugerindo que a mobilização estava sendo realizada contra auditorias e revisões de fundos.

Uma imagem compartilhada repetidamente por Milei mostrava bandeiras com slogans e os logotipos da CGT e do Partido Comunista na Plaza de Mayo. A legenda sugeria que a marcha era política e não representava os interesses dos estudantes, conforme reivindicado.

Um dos comentários compartilhados por Milei, atribuído a Javier García, questionou as motivações por trás da mobilização, acusando parte dos manifestantes de buscar oprimir politicamente um governo não peronista.

A comerciante autodenominada Lady Market também teve sua mensagem compartilhada pelo presidente, criticando os manifestantes por sua suposta falta de engajamento em outras questões sociais. Milei ecoou ainda a desconfiança em relação à falta de fundos alegada pelo claustro universitário, destacando gastos supostamente incoerentes com a marcha.

Racha entre reacionários

A divisão interna é uma realidade entre os aliados de Milei no Legislativo de Buenos Aires, com quatro blocos na Câmara dos Deputados e três no Senado. Recentemente, um desses grupos que atua politicamente alinhado com La Libertad Avanza na província de Buenos Aires se distanciou do governo com uma declaração em defesa da educação pública e do seu financiamento.

A mensagem dos nove deputados provinciais aliados ao presidente Javier Milei ocorreu antes da marcha universitária desta tarde no Congresso e na Praça de Maio, exigindo financiamento estatal para as universidades e defendendo a educação pública. Para Milei, trata-se de uma mobilização “política”, orquestrada pela oposição.

“Os deputados da província de Buenos Aires que compõem o bloco Unión Renovación y Fe expressam mais uma vez o nosso compromisso com a defesa da educação pública, orgulho histórico do nosso país. A saudável discussão que o governo nacional se propôs a ter sobre o tamanho do Estado e suas responsabilidades não pode de forma alguma afetar o cumprimento de suas obrigações essenciais”, diz a carta dos legisladores libertários de Buenos Aires.

Da Unión Renovación y Fe, afirmaram que “não agem em conjunto” com o bloco principal dos libertários e que esta não é a primeira vez que expressam posições díspares. Já tinham traçado divergências, por exemplo, no tom das queixas que surgiram do partido no poder, principalmente de Milei, contra a artista Lali Espósito.

Como mais um manifestante, o presidente da União Cívica Radical (UCR) opinou sobre os ataques do Executivo às universidades públicas, sob xingamentos dos manifestantes de esquerda: “A universidade pública e a educação pública é o que nos fez como sociedade, é o que estruturou toda a nossa sociedade. Uma sociedade que tem ou teve mobilidade social é uma sociedade de classe média, o que nos diferenciou dos demais países e dificultou que atingíssemos o nível que alcançamos na Argentina.”

O ex-chefe do governo de Buenos Aires, Horacio Rodríguez Larreta, postou uma foto em sua conta X, na qual ele aparecia ao lado de um grupo de estudantes. O apoio de Rodríguez Larreta à reivindicação universitária soma-se ao consenso que se estendeu aos setores de “diálogo” com os libertários. Desde a União Cívica Radical (UCR) ao Partido Justicialista (PJ), passando pela Coligação Cívica (CC), a Frente de Renovação (FR) e a Frente de Esquerda e Trabalhadores (FIT), diversos setores políticos estiveram presentes na marcha.

Autor