Carnaval do Rio celebra cultura Yanomami e resistência dos povos originários

A primeira noite de desfiles, no domingo, celebrou a resiliência e beleza dos povos indígenas brasileiros, em vez de estetizar a tragédia humanitária.

Imagem Divulgação Rio Tur

O Sambódromo do Rio de Janeiro testemunhou neste ano dois desfiles profundamente conectados aos povos originários brasileiros, em um espetáculo que mescla a beleza do carnaval com a conscientização sobre questões humanitárias urgentes. A Acadêmicos do Salgueiro apresentou “Hutukara”, um enredo que mergulhou na mitologia e cultura do povo Yanomami, enquanto a Acadêmicos do Grande Rio trouxe “Nosso destino é ser onça”, destacando a figura poderosa do felino na mitologia tupinambá.

Essa não é a primeira vez que os povos originários são celebrados nos desfiles do Rio. O carnavalesco Fernando Pinto, por exemplo, foi pioneiro nessa abordagem, destacando a cultura indígena em seus enredos nas décadas de 1980 e 1990.

O desfile da Acadêmicos do Salgueiro foi uma celebração da resiliência do povo Yanomami, destacando sua luta pela sobrevivência diante das ameaças trazidas pelo garimpo em sua região. Com o refrão “Ya te mi xoa” – “ainda estou vivo”, a escola buscou arrebatar as arquibancadas e o júri, transmitindo a mensagem de que a persistência em sobreviver é a maior arma do povo Yanomami, assim como do samba e suas escolas.

O enredo contou com a participação de Davi Kopenawa, líder Yanomami e coautor do livro “A queda do céu”, que desfilou no último carro da escola. Na composição do samba-enredo, Davi foi o eu-lírico, transmitindo a importância de aprender a língua portuguesa para denunciar o sofrimento de seu povo. O desfile teve um tom político, com críticas à invasão de terras indígenas e à destruição ambiental causada pelo garimpo.

Com uma abordagem política e crítica, o desfile começou com uma comissão de frente impactante, onde bailarinos retratavam feridas e faziam alusão à conexão entre a natureza e a vida humana. A crítica aos invasores da terra yanomami foi representada por um tripé chamado “comedor de terra”, que exibia uma escavadeira, simbolizando a destruição causada pela atividade do garimpo.

O Salgueiro também apostou em elementos visuais únicos, como a iluminação em neon e materiais espelhados, para representar a cultura Yanomami e dar brilho ao desfile. Em vez de focar nos problemas enfrentados pelos Yanomamis, o enredo enfatizou a admiração e a humanidade desse povo, incentivando todos a se unirem em sua defesa.

O desfile contou com a participação de figuras proeminentes, incluindo Davi Kopenawa e seu filho Dário Kopenawa, Ehuana Yanomami, Morzaniel Iramari e o artista visual Joseca Yanomami, que desfilaram com o Salgueiro. O evento também prestou homenagem à memória do jornalista britânico Dom Philips e do indigenista Bruno Pereira, assassinados em 2022.

A resiliência da onça

Carnaval 2024 GRANDE RIO 11-02-2024- Desfile da Escola Grande Rio no Sambódromo da Marquês de Sapucaí. Foto: Alex Ferro/Riotur

Já a Acadêmicos do Grande Rio trouxe a figura da onça como um símbolo do imaginário tupinambá, representando a resistência dos povos originários frente à colonização. O desfile reconheceu e acolheu as narrativas indígenas, bordando ficcionalmente a figura da onça como parte do patrimônio cultural brasileiro.

O felino é tratado como uma espécie de fantasmagoria, como o símbolo de todas as invisibilizações sofridas pelos povos originários das Américas, mas também como o vetor de sua resiliência. A onça sobrevive, como defende o enredo, na literatura de Guimarães Rosa e Ariano Suassuna, na arte popular, nas lutas indígenas e pelas florestas, em cada corpo negro ou travesti e queer que se autodeclara “pantera”.

Carnaval 2024 GRANDE RIO 11-02-2024- Desfile da Escola Grande Rio no Sambódromo da Marquês de Sapucaí. Foto: Alex Ferro/Riotur

Em ambos os desfiles, o tom crítico e a valorização das identidades originárias foram evidentes, destacando a capacidade do carnaval de funcionar como uma antena dos movimentos sociais e políticos do país. Os artistas à frente das agremiações ressaltaram a importância de trazer à tona questões urgentes e de reconectar o público com as diversas identidades brasileiras.

Além disso, os desfiles foram marcados por iniciativas sustentáveis, como a reciclagem de alegorias e o uso de materiais naturais nas fantasias. Essa preocupação ambiental reflete o compromisso das escolas de samba com a preservação da natureza e das culturas tradicionais.

Em um momento em que os povos indígenas enfrentam ameaças crescentes e a destruição de seus territórios, os desfiles do Carnaval do Rio de Janeiro se destacaram como uma poderosa ferramenta de conscientização e resistência, celebrando a diversidade cultural e reafirmando a importância de proteger e valorizar as tradições ancestrais.

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