Sobre Sarah e Marielle: se tudo é feminicídio, nada é feminicídio

Sarah Domingues era uma liderança do movimento estudantil gaúcho e foi diretora da União Nacional dos Estudantes.

A estudante Sarah Silva Domingues | Foto: reprodução/redes sociais

Tenho acompanhado a repercussão da morte tristíssima da Sarah Domingues, estudante da UFRGS, pesquisadora, militante do movimento estudantil, de esquerda, alvejada por mais de 20 tiros de pistola 9mm (de uso restrito), por dois assassinos encapuzados, numa aparente execução de um homem na Ilha das Flores, comunidade paupérrima de Porto Alegre.

Ao que tudo indica, Sarah estava lá por acaso, fazendo um trabalho acadêmico, e morreu como “dano colateral”. Pelo menos foi o que as autoridades competentes trouxeram até agora. É sobre isso que gostaria de chamar atenção: há diversos posicionamentos de notas de pesar insinuando ou mesmo afirmando categoricamente que Sarah foi vítima de feminicídio, simplesmente porque ela era mulher. Não é. Feminicídio é o assassinato de uma mulher em decorrência de sua condição de mulher, ou seja, se morta em contexto de violência doméstica, de violência sexual, ou algum outro indicativo explícito de misoginia. Não parece ser o caso do assassinato de Sara.

Digo isso porque o feminismo atualmente hegemônico é pródigo em criar conceitos — ou, na maioria das vezes, criar jargões e alçá-los artificialmente à condição de conceitos, mas isso é outra discussão — e, precisamente por esta prodigalidade, banalizar seu uso. Isso causa confusões perigosas e mascara, dilui, fenômenos graves.

Vi o mesmo quando setores dos movimentos sociais cravaram que o assassinato de Marielle Franco ocorrera em decorrência de ela ser “mulher negra e lésbica”, o que escamoteia um crime bárbaro de violência política, de evidente viés antidemocrático e anti esquerda, mais relacionado ao que Marielle pensava e fazia do que ao que ela era.

Da premissa que o ambiente machista, racista, lgbtfóbico expõe todos os indivíduos destes grupos a episódios de violência não pode decorrer imediatamente que toda e qualquer violência que eles sofram decorram da discriminação e do “ódio” contra sua identidade específica. Isso presta um desserviço imenso à luta emancipatória desses segmentos, precisamente por banalizar o episódio mais grave de violência contra segmentos subalternizados.

O ser humano tem uma imensa dificuldade de lidar com a aleatoriedade, e a aparente casualidade de um assassinato, sobretudo de uma mulher na flor da idade, cheia de vida e expectativas, mexe precisamente com esta dificuldade. É difícil pensar que alguém tão especial apenas estava no lugar e na hora errados. Então, a primeira resposta, é atribuir algo de especial à barbárie cotidiana. O problema é que, seguida esta toada, chega-se ao paradoxo: se tudo é feminicídio, então nada é.

E, apesar de tudo isso, cabe a exigência, a plenos pulmões: justiça por Sarah Domingues!

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