O lugar da esperança

Após escapar do ex-marido abusivo, uma jovem enfrenta as complicações de um sistema de acolhimento. Ela começa a descobrir a extensão da própria força ao construir sua própria casa.

Imagem: Divulgação/Netflix

É um título significativo que revela o sentimento de busca por um local bom para se viver, representa um sonho, ou a mudança importante de uma realidade que machuca. Ao ver o filme, “O Lugar da esperança”, pude refletir sobre as centenas de milhares de mulheres que cotidianamente vivem em lares abusivos e que tentam recomeçar. Com algumas delas convivemos e procuramos prestar nossa solidariedade e buscar a rede de atenção às mulheres nessas situações de extrema vulnerabilidade.

O filme, um drama envolvente irlandês, está disponível na Netflix e é dirigido pela britânica Phyllida Lloyd, diretora de teatro e cinema, com a participação na direção da atriz principal Clare Dunne. Clare Dunne vive Sandra no filme e protagoniza a batalha diária pelos cuidados das duas filhas pequenas e pela conquista de uma casa, já que vive de auxílio do governo para manutenção de si e das filhas, tendo saído de uma situação de violência de seu ex-companheiro.

Embora não se trate de uma história real, a criação do enredo contou com Clare Dunne e a contribuição de Malcolm Campbell no processo de elaboração da temática.

A questão da violência doméstica, em qualquer lugar do mundo, traz o importante questionamento:  O desafio não está apenas em sair de casa, mas ter para onde ir. A história de Sandra revela como a violência doméstica e o direito à moradia estão relacionados. Em muitos casos, mulheres se submetem à agressão por não ter para onde ir e acabam compondo as estatísticas como vítimas fatais nas mãos de seus parceiros.

Na Irlanda, onde se passa a película, uma em cada quatro mulheres foram abusadas por um parceiro atual ou anterior, ocorrendo também com as imigrantes. A ONG Women’s Aid revelou que, em 2019, foram 19.258 denúncias de violência doméstica contra mulheres, sendo 12.742 incidentes de abuso emocional, 3.873 incidentes de abuso físico e 2.034 incidentes de abuso financeiro, 609 casos de abuso sexual, e destes 288 estupros. A Irlanda tem uma população estimada de 4,8 milhões de habitantes e é considerada um país desenvolvido, com o terceiro maior índice de Desenvolvimento Humano . A Irlanda aprovou no ano de 2018 a Lei de Violência Doméstica, que prevê proteção às vítimas de “controle coercitivo”, um tipo de abuso emocional e psicológico que retira a autoestima e paralisa a vítima. Também criaram números de telefone de denúncia e orientações para a proteção das vítimas.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) destaca que a violência contra as mulheres continua “devastadoramente generalizada e começa assustadoramente cedo”, indicando que ao longo da vida, uma em cada três mulheres, ou cerca de 736 milhões de pessoas, sofre algum tipo de violência física ou sexual. Essas informações, por si, só confirmam que a violência contra as mulheres não escolhe cor/raça, nível sócio econômico ou território e, no entanto, os recortes de vulnerabilidade e a interseccionalidade acentuam e quantificam as violências. Na escala de desigualdades entre as mulheres, as negras são as que mais sofrem com as piores condições estabelecidas pelo patriarcado e pelo machismo, seja no acesso a empregos, onde dificilmente acessam altos cargos e, quando pobres, ainda são maioria nos sub empregos, precários e empregos domésticos, também precarizados e com menores salários. Também são minoria na política e sofrem diversos tipos de violências, diferenciadas das mulheres brancas, apresentando peculiaridades que precisam ser reconhecidas no conjunto da luta, mas também enfrentadas na sua especificidade e diversidade para elevar o patamar de igualdade.

A violência doméstica praticada contra mulheres no seio familiar infelizmente é uma realidade, que por anos foi culturalmente aceita e há quase duas décadas está expressamente criminalizada no Brasil, servindo de referência para muitos países. A Lei 11.340/2006, normativa que dispõe sobre medidas de prevenção e punição destes crimes, recebeu diversas atualizações importantes e precisa ser seguida no rigor da lei, considerando o aumento da violência de gênero.

A matéria publicada no portal vermelho da semana passada (colocar data) alerta sobre o quanto nosso país segue profundamente desfavorável para a vida de  meninas e mulheres, evidenciando os dados de violência que compõe o relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que aponta o crescimento dos feminicídios e homicídios femininos, bem comoos estupros de vulneráveis, com crescimento de 14,9%. Uma medida elogiável e uma conquista para as mulheres foi a sanção pelo Presidente Lula da lei que garante o pagamento, por até seis meses, de auxílio aluguel a mulheres vítimas de violência doméstica em situação de vulnerabilidade socioeconômica e que precisam ser afastadas do lar, atendendo mais um benefício entre as medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha. No filme, observamos o atendimento do Estado para Sandra que vive um período em um hotel, onde inicia todo um processo para construir sua própria casa.

O Brasil tem um deficit habitacional de 5,87 milhões de moradias, sendo que 74% da falta de moradia afetam famílias que ganham até R$ 2.640, em um país marcado pela especulação imobiliária, assim como também apresenta 11,4 milhões de domicílios vazios, segundo matéria do Brasil de Fato. A falta de moradia afeta o acesso das mulheres a outras políticas públicas e o recorte de gênero contribui no entendimento de que as condições de moradia das mulheres tendem a ser ainda mais precárias se comparadas com três elementos: espaço territorial, gênero e raça, o que vem acompanhado de outros agravos como as condições de saúde, muitas vezes de saúde mental, o atraso na educação dos filhos e o bem-estar.

Miremo-nos no exemplo e luta das mulheres para contestar as nefastas consequências do sistema patriarcal e racista, construído e legitimado historicamente, para transformar em um movimento amplo, unitário, para pavimentar um caminho para desconstruir e eliminar a misoginia e qualquer tipo de violência, encontrando “o lugar de esperança” para todas as mulheres.

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Ficha técnica: Filme: O lugar da esperança Título original Herself – (Pode conter spoiler)
Netflix / 1h 37min / Drama
Direção: Phyllida Lloyd
Roteiro Malcolm Campbell, Phyllida Lloyd
Elenco: Clare Dunne, Conleth Hill, Harriet Walter

Referências:

O que fazer em caso de violência contra a mulher na Irlanda?

Devastadoramente generalizada: 1 em cada 3 mulheres em todo o mundo sofre violência

Desafios em relação à moradia popular

Brasil registra aumento de feminicídios e estupros no 1º semestre

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