Forças Armadas enfrentam 56 ações penais por assédio sexual de militares
Denúncias de assédio e importunação sexual abalam as Forças Armadas, revela investigação da Folha. Militares enfrentam acusações e falhas nas investigações internas.
Publicado 12/07/2023 14:24 | Editado 13/07/2023 15:02
Um conjunto de casos revelados pela Folha de S. Paulo na segunda-feira (10) mostra uma sequência preocupante de manipulação de assédio e importunação sexual dentro das Forças Armadas nos últimos anos. Dados do Superior Tribunal Militar (STM) evidenciam que, desde 2018, foram abertas 56 ações penais sobre o tema, sendo 29 denúncias apenas no último ano.
As vítimas, em sua maioria mulheres militares, relatam situações de constrangimento e desrespeito dentro de unidades militares, que vão desde cantadas inadequadas e toques indesejados até ataques físicos sem testemunhas em ambientes fechados. A reportagem teve acesso a informações sobre 44 desses processos, que evidenciam o impacto psicológico nas vítimas que servem nas Forças Armadas, além de apontar falhas e revitimização durante as investigações internas.
Um dos casos destacados é o de Tamires (nome fictício), sargento temporário do Exército, que relatou ter sido assediada em três ocasiões pelo tenente Fábio de Andrade Fontes. Porém, o medo imposto pela obediência rígida militar e pelo ambiente machista da caserna a impediram de denunciar imediatamente os assédios. Após dois anos de processo, o militar foi condenado a um ano e meio de detenção, decisão que Tamires considerou insuficiente, uma vez que o acusado manteve sua carreira militar enquanto ela teve o contrato interrompido.
Outro caso revelado foi o de Marta (nome fictício), sargento temporário que denunciou o assédio de um tenente mas teve sua queixa arquivada e, posteriormente, ainda foi acusada pelo Ministério Público Militar (MPM) por delação caluniosa contra o oficial. O ministro Artur Vidigal de Oliveira, do Superior Tribunal Militar, indicou que a sindicância interna questionou o comportamento do denunciante, mostrando uma tentativa de culpar a vítima pelo comportamento sofrido.
A procuradora Najla Nassif Palma, ouvidora da Mulher do Ministério Público Militar (MPM), afirma que o aumento das denúncias se deve à conscientização das mulheres militares e à confiança na seriedade das apurações. Segundo ela, no passado, havia uma realidade oculta que não vinha à tona. No entanto, a pesquisa realizada pelos juízes Mariana Aquino e Rodrigo Foureaux revela que 83% das mulheres que sofreram assédio sexual no trabalho não denunciaram o caso. Entre as razões citadas, destacam-se a descrença na apuração (13,3%), medo de represálias (12,7%) e exposição (12,5%).
A pesquisa também revelou que 163 militares das Forças Armadas admitiram ter sofrido assédio, sendo que 87% apontaram que o assédio partiu de um superior.
Triste realidade
Ao Portal Vermelho, a presidenta da União Brasileira de Mulheres (UBM), Vanja Andrea, afirmou que essa é uma realidade que as mulheres oficiais veem enfrentando há muito tempo. “Infelizmente essas mulheres não tem amparo na própria instituição para fazer a denúncia. Então, se o machismo que a gente vive aqui fora e que faz com que as mulheres, apesar da Lei Maria da Penha, apesar de uma série de instrumentos que já existem hoje, ainda sejam impedidas de denunciar, imagina no exército que é um ambiente bastante machista? Essas mulheres vivem a realidade do assédio todos os dias, moral, sexual…”.
Vanja relembrou o Caso Roxana Bonessi, um dos feminicídios que mais manchou a história de Manaus, no Amazonas. A 2ª tenente, de apenas 27 anos, foi morta pelo então capitão do exército Paulo Nelson Loureiro com um golpe de faca na garagem da 12ª Inspetoria de Contabilidade e Finanças do Exército. O crime cometido pelo ex-militar se deu pelo fato dele não aceitar o fim do rápido relacionamento que tiveram.
De acordo com a dirigente feminista, que acompanhou o desfecho na época, “esse cara só respondeu dentro do exército. E mesmo assim foi tudo muito moroso, tudo acobertador e ele não foi punido como deveria”, disse. “Então quando esses casos ficam apenas dentro do tribunal do exército vai se passando o tempo e as pessoas não acreditam realmente que vai chegar numa definição, de que esses culpados vão ser punidos pela própria pela proteção institucional que eles têm”, concluiu.
Forças repudiam irregularidades
As Forças Armadas, cujos efetivos ultrapassam 360 mil militares, repudiaram a prática de assédio em notas oficiais, afirmando que apuram qualquer conduta criminosa relatada. A Marinha afirmou que “atua na prevenção e no combate a condutas atentatórias contra a pessoa e à discriminação por razão de sexo”. Afirmou também “que o tema é tratado em todos os círculos hierárquicos, abrangendo todas as etapas de formação do pessoal, desde o ensino militar”.
O Exército disse que “não compactua com qualquer tipo de irregularidade eventualmente praticada por seus integrantes, repudiando veementemente quaisquer atos que desabonem a ética e a moral, as quais devem nortear a conduta de todo militar”.
Já a Força Aérea Brasileira (FAB) disse que apura todas as denúncias que recebe e pune casos comprovados. “O Comando da Aeronáutica reitera que repudia condutas contrárias aos regulamentos que não representam os valores, a dedicação e o trabalho do efetivo em prol do cumprimento de sua missão institucional.”
No entanto, nenhuma delas informou se foram aplicadas punições disciplinares aos 23 militares denunciados. Desses, 11 já foram condenados ao menos em primeira instância, dos quais 7 com sentença definitiva. Parte dos processos, porém, corre sob sigilo.
A legislação militar prevê que militares condenados a penas superiores a dois anos podem ser expulsos ou perder suas cargas. Porém, a pena máxima prevista para assédio sexual é de apenas dois anos, o que resulta em condenações frequentemente abaixo desse patamar. Já a importunação sexual, tipificada desde 2018, tem pena de até cinco anos.
Falta de punições ainda é realidade
A pesquisa também revelou que o número de militares que declararam ter sofrido assédio é superior ao de investigações abertas nos últimos sete anos. Embora haja uma preocupação crescente com a questão, nem todas as investigações são conduzidas adequadamente. A procuradora Najla Nassif Palma afirmou que alguns inquéritos foram mal conduzidos, mas ressalta que há orientações para que isso não ocorra.
No entanto, mesmo com investigações mais cuidadosas, as condenações e punições ainda são incertas. O crime de assédio sexual requer requisitos específicos para ser tipificado, como o uso da superioridade hierárquica para obter “vantagem sexual”.
Apesar dos desafios, o estudo revela que há uma mudança de cenário nas apurações, com a busca de canais de comunicação pelas militares e a realização de palestras em unidades militares sobre o tema. A magistrada Mariana Aquino tem sido convidada para falar sobre o assunto, trazendo jurisprudências e abordando casos de assédio sexual.
Porém, para que haja uma mudança efetiva, Vanja acredita que “democratizar o espaço com a participação não apenas dos homens, mas com a presença mais quantitativa das mulheres” ajudaria e cita o Projeto de Lei do Senado (PLS) 213/2015, da ex-senadora Vanessa Grazziotin, que altera a Lei do Serviço Militar nº 4.374/1964, para incluir a possibilidade do alistamento e prestação do serviço opcional para as mulheres.
“Outra questão seria fazer com que esses espaços [das Forças Armadas], sejam espaços onde o aprendizado sobre a questão de gênero, sobre a questão da mulher, sobre a questão das relações e do respeito devessem ser questões presentes o tempo todo”, continua Vanja. “Nós viemos de um governo que incentivava a violência; o machismo, o poder sobre as mulheres. Mas agora estamos em outro governo e é o momento em que nós devemos construir uma nova forma de pensar”.
A presidenta da UBM destaca ainda que só será possível “tratar essa questão estando mais presentes dentro dessa realidade. Colocar mais mulheres, tratar essa questão da educação; fazer com que o exército entenda que esses crimes tem que ser punidos. Assédio moral e assédio sexual são crimes.”
E, nesse sentido, ela enfatiza que “culpar as mulheres faz parte do machismo incutido na sociedade. A mulher tem que ser desacreditada e em todos os lugares é isso. O crédito é sempre dado ao homem nesses casos de assédio e tal. Então desacreditar a mulher é exatamente o papel que essa sociedade machista cumpre para poder fazer com que o homem saia impune dessas situações. Nós não somos culpadas e nós temos que acabar com isso”, finaliza.
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com informações de agências