Extrema-direita perde fôlego, mas cisão na sociedade permanece

Analista internacional diz que morte de Berlusconi e judicialização contra políticos de extrema-direita são duro golpe numa força política que ainda influencia eleições.

Bolsonaro no Brasil e Trump nos EUA são beneficiários de Berlusconi na Itália.

Duas décadas antes de Donald Trump, Silvio Berlusconi, morto no último dia 12, já usava seu sucesso empresarial como trunfo eleitoral, a vitimização contra os juízes como instrumento de mobilização, ataques caricatos às elites culturais como força aglutinadora e o domínio dos códigos comunicacionais para reduzir a política a uma sucessão de controvérsias, para usar como cortina de fumaça. Antes das redes sociais, o manual da extrema-direita já estava todo escrito por um italiano.

Antes de Donald Trump, Boris Johnson, Jair Bolsonaro ou Viktor Orbán, Berlusconi já expressava seu ódio ressentido às mulheres, e deixava sua marca como polemista, e nada mais. Há quem o admire por ter sido capaz de fazer tudo que se faz hoje, mesmo antes de existirem os algoritmos e bolhas virtuais, dos quais Trump e Bolsonaro são tão dependentes.

Berlusconi foi o primeiro a normalizar e empoderar gente ignorante e violenta no governo e no parlamento, militares caducos, jovens racistas, machistas e conservadores expressando abertamente suas opiniões asquerosas na mídia, entre tantos outros personagens que estavam escondidos nos esgotos da história. Ele próprio disse: “Fomos nós que legitimámos a Liga e os fascistas”, referindo-se às gangues reacionárias que tomaram o poder na Itália. Até então, havia um escudo antifascista unânime na política italiana.

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Foi essa gigantesca operação de marketing que transformou o homem mais rico e elitista da Itália num homem do povo. Mesmo não moralizando coisa alguma e destruindo a coesão social de seu país, ele continua sendo mito para muita gente. Sua trajetória é mergulhada em casos de corrupção, escândalos sexuais e frases racistas. Ao todo, ele enfrentou 35 processos criminais, mas obteve apenas uma condenação definitiva. Estava dada a dica para monstruosidades como Bolsonaro, Trump, Duterte ou Orban. 

Aurora da democracia 

Mas, a morte de Berlusconi tem sido um crepúsculo melancólico para a extrema-direita, que fica sem um herdeiro à altura na Itália, e, conforme se avolumam acusações, julgamentos e condenações a Donald Trump nos EUA. Por aqui, Bolsonaro vai se recolhendo à sua insignificância, e, pelo mundo, o povo vai perdendo a ilusão nos políticos populistas que agitaram as redes sociais nos últimos anos com promessas que mudaram tudo para pior.

Em entrevista ao Portal Vermelho, a especialista em Relações Internacionais, Flávia Loss Araújo (FESPSP), avalia os rumos da direita internacional frente aos revezes que vem sofrendo nos últimos meses. Para ela, de fato, a morte de Berlusconi e a possibilidade de prisão de Donald Trump “são golpes duros ao crescimento da extrema-direita”. “Observa-se um freio à essas tendências”, diz ela, referindo-se ao populismo à beira do crime e da ilicitude que estes políticos praticam.

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Flávia ressalta que Berlusconi já trazia várias dessas características do modo de fazer política e se comunicar com a população “de um jeito muito tosco, mas também simples. Um bufão da política italiana que era muito ridicularizado na política internacional, mas que cativou uma grande parcela da população italiana. Muitos deles ainda se manifestam de luto pela memória de Berlusconi, considerando ele um grande estadista”, diz ela.

Fratura social

Em sua opinião, a política segundo Berlusconi trouxe danos em vários níveis à Itália, mas também antecipou tendências em campos como a comunicação política. “Isso antes das redes sociais!”. 

Depois dele, outros políticos foram muito além de suas práticas, avalia a especialista. “Ele ainda tinha um certo trato com o mundo da política, da diplomacia internacional. Trump é muito mais grosseiro, com um marketing mais agressivo, já fazendo uso das redes sociais”, compara.

Flávia considera que, embora se percebam os “efeitos benéficos da Justiça indo atrás dos mal-feitos desses políticos”, na consciência das populações, a disputa política encontra sociedades fraturadas. “Não podemos esquecer, que, em todos os países que viveram este avanço da extrema-direita, como o Brasil, ficou uma marca profunda de cisão na sociedade”, analisa. 

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Como o Brasil e os EUA, na Itália, de uma certa forma, esse ambiente de fratura e falta de rumos é evidente, conforme não se encontra um caminho que supere o modelo político de Berlusconi. “A extrema-direita italiana também está fortalecida na figura do Matteo Salvini [vice-premiê] e da própria Georgia Meloni [premiê], que chegam ao poder surfando nessa onda conservadora”.

Reação e resistência 

O maior prejuízo, portanto, na opinião da analista é essa ruptura na sociedade, com polarização enorme que alimenta esse tipo de político. Para ela, as próximas eleições ainda vão estar sob a influência desta corrente política.

“Mesmo que esses políticos faleçam ou sejam presos, a cisão que provocaram tem um efeito perene na sociedade. A cada eleição se observa a extrema-direita se fortalecendo. Não se sabe para onde iriam os eventuais votos de Donald Trump, ainda”, pondera.

Flávia considera que o maior legado desses políticos foi provocar uma ruptura no tecido social, que coloca as pessoas em lados antagônicos, disputando de maneira raivosa sua ideologia política. “Uma ideologia nociva que visa a destruição da política, porque sua linguagem é da antipolítica”, diz.

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Este cenário fraturado tem sido o maior desafio da esquerda, que precisa unir a sociedade em torno de valores progressistas. Em vez disso, precisa defender bandeiras humanistas como direitos humanos, políticas sociais, serviços públicos e o próprio estado, da sanha predatória do neoliberalismo sob roupagem neofascista. ”As forças democráticas ainda têm dificuldade de reagir e lidar com esse legado”, diz ela. 

Outro aspecto que garante a perenidade desta mentalidade reacionária é a celeridade dos avanços tecnológicos, em ritmo de blitzkrieg, que não dá tempo à democracia para absorvê-las e controlá-las. “É preocupante como essa máquina das fake news representada pelos algoritmos e, agora, a inteligência artificial, não parou e só avança”, comenta.

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