China, Brasil e os solavancos no sistema monetário internacional
A visita de Lula à China se tornará um marco nas relações internacionais do Brasil. A China é, desde 2009, o principal parceiro comercial do Brasil.
Publicado 17/04/2023 14:56 | Editado 18/04/2023 12:19
“A China se desenvolveu de um país pobre e fraco para segunda maor economia do mundo, mas, não conegiu isso por meio da expansão militar nem através da pilhagem colonial. Essa conquista foi alcançada através do trabalho árduo do seu povo e da sua dedicação à paz. – Presidente Xi Jimping em discurso pronunciado na sede da ONU (18 de janeiro de 2017)
“Ninguém vai proibir que o Brasil aprimore sua relação com a China”. – Presidente Lula em reunião com o presidente Xi Jinping em Pequim (14 de abril de 2023)
A visita de Lula à China se tornará um marco nas relações internacionais do Brasil. Isso porque se trata realmente de um retorno do país à arena internacional e as boas relações diplomáticas com a China, desfazendo o discurso anti-chinês da gestão do Ministério das Relações Exteriores durante o trágico governo Bolsonaro. Além disso, as negociações econômicas em curso poderão ajudar na reindustrialização, alavancando o desenvolvimento econômico do Brasil. Há uma torcida levemente contra, digamos assim. Por exemplo, certa emissora deu grande destaque que, antes de se encontrar com Xi Jinping, Lula teria que fazer teste da Covid-19.
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Na realidade, os dois países já possuem relações econômicas profundas. A China é, desde 2009, o principal parceiro comercial do Brasil, desbancando os Estados Unidos que ocuparam esta posição por 80 anos. Em 2022, 27% (US$ 89,4 bilhões) de todas as exportações brasileiras foram para o mercado chines. O Brasil importou da China US$ 60,7 bilhões. Logo, o volume de comércio entre os dois países foi de US$ 150,1 bilhões. Algo bastante expressivo. No entando, apesar do saldo superavitário, o Brasil encontra-se em desvantagem, pois suas exportações para China estão concentradas em soja e na indústria extrativa. No encontro foram assinados 15 acordos comerciais que devem expandir ainda mais o comércio entre os dois países e, epera-se, modifique a pauta exportadora brasileira.
Nos últimos anos, o Brasil também vem recebendo investimentos substanciais de empresas chinesas em infraestrutura, em especial no setor elétrico e no setor de petróleo. Todavia, o mais importante são os investimentos das indústrias de ponta chinesa, e são estas empresas que o presidente Lula pretende atrair para o Brasil. A chinesa BYD, por exemplo, por meio de um acordo com o Governo do Estado da Bahia, montará uma fábrica de carro elétrico e um VLT 100% elétrico. Acordos de cooperação em semicondutores, 5G e 6G e inteligência artificial que incluam transferência de tecnologia para o Brasil são fundamentais. É assim que deve ser analisada a visita do presidente Lula à Huawei, a maior fornecedora de equipamentos de telecomunicações do mundo. Se Washington acredita que a Huawei é um risco à segurança nacional, isso é um problema dos Estados Unidos, e não cabe suas autoridades escolherem que tecnologia será utilizada pelos brasileiros. Aliás, os críticos deveriam listar o que o governo Biden ofereceu para o Brasil na recente visita que o presidente Lula fez aos Estados Unidos, além da “vultosa” soma de US$ 50 milhões para o “Fundo Amazônia”.
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Do lado chinês há o pleito de adesão ao projeto Belt and Road Initiative (BRI), ou pelo menos um aceno das autoridades brasileiras à iniciativa. O projeto completa 10 anos em 2023 e abarca atualmente cerca de 151 países e 32 organizações internacionais[i]. Em projetos de infraestrutura (portos, ferrovias etc) já foram gastos em torno de US$ 1 trilhão da carteira do BRI. Em janeiro de 2018, em Santiago do Chile, foi realizada II Reunião Ministerial do Fórum entre a China e a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Na ocasião, foi aprovada uma declaração especial sobre o BRI, afirmando a implementação da iniciativa na região. Na América Latina e Caribe, 19 países já possuem acordos no âmbito BRI. A adesão brasileira provavelmente encorajará mais países a se associarem ao projeto, daí a importância que as autoridades chinesas estão dando à incorporação do Brasil ao BRI. A iniciativa não agrada a todos dentro do governo brasileiro, e não foi assinada nesta visita. Porém, continuará na mesa de negociações, e num futuro próximo o Brasil deverá fazer parte do BRI.
Agora um comentário sobre a polêmica da substituição do dólar e a proposta de criação de uma nova moeda entre os países do BRICS. Em discurso na quinta-feira (13/04), durante a posse da ex-presidente Dilma Rouseff no comando do Novo Banco de Desenvolvimento, o presidente Lula questionou o porquê de as relações comerciais entre os países serem lastreadas no dólar. O discurso está sendo tratado, por parte dos meios de comunicação do Brasil, como uma provocação aos Estados Unidos e um “afago” aos chineses. Ora, propostas que reduzissem o papel do dólar nas transações comerciais entre os países do BRICS já tinham sido colocadas na primeira reunião de cúpula do bloco, realizada em Ecaterimburgo (Rússia) em 2009, sendo rejeitada pelo governo chinês[ii]. Aqui cabe um alerta: não existe nenhum acordo interacional que obrigue as nações a usarem o dólar. O sistema monetário internacional (SMI) atual é baseado no padrão dólar-flexível. É um sistema hierárquico que tem o dólar como moeda-chave, mas nunca se tirou um acordo para que isso fosse assim. Nem tão pouco foi o “mercado” que escolheu o dólar para ser a principal moeda de referência internacional. No atual padrão dólar-flexível, o dólar é a moeda chave do SMI porque os Estados Unidos são a maior potência militar e econômica do mundo.
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Mas esta situação que estabelece um privilégio “super exorbitante”, confome ressaltou Susan Strange[iii], é cada vez mais questionado. No fim de março foi anunciado um acordo entre os bancos centrais de Brasil e China para realização de transações comerciais e investimentos diretamente em renminbi e real, sem a utilização do dólar. Trata-se da criação de uma clearing house (câmara de compensação) entre os dois países. No Brasil, o Industrial and Commercial Bank of China Ltd (ICBC) – o maior banco do mundo em ativos – irá operar a clearing house. Na quarta-feira (12/04) o ICBC concluiu sua primeira transação em renminbi, segundo informou o China Daily[iv]. As empresas não são obrigadas a utilizar este mecanismo de compensação. De fato, só utilizarão se enxergarem vantagens financeiras. E uma vantagem clara que poderá seduzir as empresas está na redução dos custos de transação que envolve a conversão entre as moedas quando não se utiliza uma terceira moeda, neste caso, o dólar. Chama a atenção pelo simbolismo, o recente relatório do Banco Central do Brasil divulgado no dia 31 de maio deste ano, anunciando que o renminbi é atualmente a segunda moeda das reservas internacionais do país[v] (5,37% do total). Com a criação da clearing house a tendência é que o renminbi ganhe mais espaço no estoque de reservas do Brasil.
Em relação à criação de um arranjo que possa reduzir a dependência do dólar nas relações econômicas entre os países do BRICS, vale lembrar que esta é uma discussão que vem desde a criação do bloco. A proposta ganhou força nos últimos anos em razão de Washington passar a utilizar sua moeda para impor sanções a países que ele considera inimigos, basta ver o exemplo recente da Rússia após a guerra com a Ucrânia. A “Iniciativa R5” que o presidente Lula fez referência em seu discurso, em alusão as respectivas moedas nacionais dos países do BRICS – Real, Rublo, Rupia, Rand e Renminbi – tem o objetivo de ampliar o uso dessas moedas nas relações econômicas intrabloco. Outra possibilidade é a criação de uma moeda digital dos BRICS. A criação de uma moeda comum é debatida desde 2022, e caso seja efetivada terá o potencial de estreitar parcerias com outros países, além daqueles que pertencem ao bloco.
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O Brasil já participa de um sistema de pagamentos – o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML) – administrado pelo Banco Central do Brasil em parceria com os bancos centrais da Argentina, Uruguai e Paraguai, mas que é pouco utilizado. De todo modo, para que um arranjo monetário que substitua o dólar tenha relevância, é fundamental um esforço político e diplomático entre os países envolvidos. Também é essencial que a economia mais desenvolvida no acordo exerça sua liderança. No caso dos BRICS, propostas como o R5 se tornam factíveis, principalmente pelo poderio econômico alcançado pela China e sua determinação em enfrentar os ataques do imperialismo norte-americano. Por isso, a tendência é que se aprofunde nas relações econômicas internacionais, a liquidação de contratos em outras moedas distintas do dólar, particularmente, em renminbi[vi]. O avanço da internacionalização do renminbi – pacientemente planejado pelo Conselho de Estado da China – irá reduzir o raio de manobra dos Estados Unidos com potencial para abalar o SMI. Estamos falando de algo muito mais violento do que a guerra comercial travada pelos dois países. Mas isso é assunto para outro artigo.
[i] Tembe, Paul. “High-quality cooperation in the Belt and Road Initiative”, People’s Daily Online, 02 de fevereiro, 2023. Disponível em: <http://en.people.cn/n3/2023/0207/c90000-10204380.html>. Acesso em 23 de março de 2023.
[ii] Moreira, Assis. “China veta menção sobre redução do papel do dólar”. Valor Econômico, 17 de junho de 2009.
[iii] Strange, Susan. “Persistent Myth of Lost Hegemony.”. International Organization, 41, 1987.
[iv] Xueqing, Jiang. “ICBC Brazil processes first RMB settlement transaction”. Disponível em:< https://www.chinadaily.com.cn/a/202304/12/WS64366b3fa31057c47ebb9bca.html >. Acesso em: 14 de abril de 2023.
[v] Banco Central do Brasil. “Relatório de Gestão das Reservas Internacionais”, vol 15, mar. 2023.
[vi] Segundo relatório do Banco do Povo da China, no fim de 2020 a China possuía 27 bancos de compensação em RMB no exterior em 25 países ou regiões. Até o final de 2020, o PBC designou 27 bancos de compensação em renmimbi no exterior em 25 países, concentrados principalmente na região da Ásia-Pacífico, seguida pela Europa. Cf. 2021 – RMB Internationalization Report. The People’s Bank of China, 2021.