Mercado ataca Lula, mas ignora R$ 795 bi gastos por Bolsonaro fora do teto
Lula nem foi empossado e já é cobrado por teto de gastos que Paulo Guedes atravessou no primeiro ano de governo Bolsonaro, sem reações escandalizadas do mercado financeiro.
Publicado 17/11/2022 20:21 | Editado 18/11/2022 19:14
A transição de governo para 2023 articula no Congresso, nos Tribunais de Contas e no Judiciário para garantir que o governo possa gastar em 2023 até R$ 198 bilhões fora do Teto de Gastos — regra constitucional criada em 2016, que limita o aumento das despesas ao crescimento da inflação. Com isso, o mercado financeiro tem reagido com desagrado, embora o governo Bolsonaro tenha feito isso em patamares quatro vezes maior, sob aplausos dos especuladores.
A maior parte deste valor equivale ao Bolsa Família, que deve voltar no início do novo governo Lula, mantendo os valores atuais do Auxílio Brasil. O próximo governo também calcula como utilizar uma parte de eventuais receitas extraordinárias (por exemplo, a arrecadação com leilões de campos de petróleo) com investimentos fora do limite constitucional.
Uma das justificativas da equipe de transição é que o Orçamento de 2023 de Bolsonaro não previu recursos sequer para merenda escolar, Farmácia Popular, creches e o Auxílio Brasil de R$ 600. Isso tem sido tratado como um “orçamento de terra arrasada” pelo novo governo.
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O teto de gastos foi criado em meio a polêmicas, pois nenhum governo criou um mecanismo que o impedisse de investir seus recursos, como fez Michel Temer. O objetivo do teto é garantir o pagamento de dividendos e juros a acionistas e credores da dívida pública. Como o teto já demonstrou não existir, fala-se em criar um mecanismo de controle fiscal atrelado ao tamanho da dívida, hoje em 77% do PIB.
Para alterar isso será preciso aprovar outra emenda constitucional. O vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin apresentou a chamada PEC (proposta de emenda à Constituição) da Transição nesta quarta (16), que trata desta questão.
Antes e depois da pandemia
Apesar de todo o enfrentamento a ser feito pela equipe de Lula e Alckmin, o ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes, conseguiu garantir fartos recursos acima do teto. Sob o pretexto da pandemia, quando foram gastos R$ 507,9 bilhões acima do teto só em 2020 e R$ 117,2 bilhões em 2021, na verdade, as autorizações para estourar o sistema fiscal começaram em 2019 com R$ 53,6 bilhões, e prosseguiram largamente neste último ano.
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Segundo levantamento do economista Bráulio Borges, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV IBRE), feito a pedido da BBC News Brasil, os gastos do governo Bolsonaro acima do teto somam R$ 794,9 bilhões de 2019 a 2022.
Além das autorizações obtidas no Congresso, a cooptação do Centrão por meio de emendas secretas garantiram outras manobras para driblar o fiscalizo, como o adiamento do pagamento de precatórios (dívidas do governo reconhecidas judicialmente) e a mudança do cálculo para definir o teto em 2022.
Neste último ano, os furos no teto no valor de R$ 116,2 bilhões impulsionaram a expansão de benefícios sociais pouco antes da eleição, em uma manobra irregular para impulsionar a reeleição de Bolsonaro.
O teto de gastos foi criado para impedir que governos de esquerda gastassem com serviços públicos e gastos sociais, mas acabaram se tornando uma dor de cabeça para os próprios governos de direita. Em setembro de 2019, Bolsonaro chegou a falar em risco de paralisação da máquina pública devido ao limite de despesas. “Eu vou ter que cortar a luz de todos os quarteis do Brasil, por exemplo, se nada for feito”, disse ainda na ocasião.
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Como algumas despesas obrigatórias seguiam crescendo automaticamente, caso das aposentadorias, a regra do teto exigia que outras fossem cortadas, ameaçando o funcionamento de serviços públicos essenciais.
Naquele ano, o Congresso alterou a Constituição para permitir que o governo transferisse para Estados e municípios cerca de R$ 46 bilhões relativos à arrecadação com cessão onerosa (leilão para exploração de campos de petróleo).
Além disso, em 2019 o governo registrou fora do teto a capitalização da Emgepron, estatal ligada à Marinha, em R$ 7,6 bilhões, com objetivo de usar esses recursos na compra de novos navios. A operação foi entendida pelo Tribunal de Contas da União como investimentos do Ministério da Defesa estariam dentro do limite constitucional.
Em maio de 2020, com a crise de covid-19, o Congresso aprovou o chamado Orçamento de Guerra, que garantiu recursos para despesas como recursos extras para o Sistema Único de Saúde (SUS), o programa de redução de jornada de trabalho para evitar demissões em empresas, compensações a Estados e municípios que tiveram forte perda de arrecadação, e o Auxílio Emergencial de R$ 600, que substituiu o Bolsa Família.
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Além da pandemia, a gestão Bolsonaro também usou a guerra da Ucrânia como justificativa para ampliar as despesas acima do teto em 2022, embora os recursos tivessem sido liberados antes do início da guerra. Bolsonaro já estava de olho na reeleição.
No final de 2021, o governo conseguiu que o Congresso aprovasse a chamada PEC dos Precatórios, com objetivo de abrir espaço no Orçamento para manter o Auxílio Brasil em R$ 400 reais. Com isso, mudou-se o cálculo do teto baseado na inflação e autorizou-se o atraso no pagamento das dívidas judiciais da União.
Depois, em julho deste ano, o Congresso aprovou a chamada PEC Kamikaze, autorizando uma série de benefícios acima do limite constitucional, como o aumento do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600 e novos auxílios para caminhoneiros e taxistas. Foi necessário modificar a Constituição, não só devido ao limite do teto, mas para contornar também a legislação eleitoral, que veda a criação de benefícios às vésperas da eleição.