O coração de Dom Pedro 1º e o golpe de Bolsonaro
Iniciativas do movimento sindical e do meio acadêmico nos empurram na direção de uma celebração crítica do Bicentenário da Independência do Brasil. Já a reverência necrófila ao coração de Dom Pedro visa somente à autopromoção de um governo que está prestes a acabar.
Publicado 21/08/2022 23:26 | Editado 21/08/2022 23:38
As centrais sindicais acertaram a mão e iniciaram, com louvor, a celebração dos 200 anos da Independência do Brasil. Em 15 de agosto, durante evento na Câmara Municipal de São Paulo, foram lançados os projetos “Brasil em 200 Nomes” e “Brasil em 200 Obras”, que comemoram o bicentenário de nossa emancipação de Portugal sob o ponto do sindicalismo.
A primeira iniciativa, a dos “200 Nomes”, lista duas centenas de “personalidades que tiveram impacto positivo na vida dos trabalhadores desde 1822”. Já o “Brasil em 200 Obras” reflete esse período por meio da arte, ao resumir os 200 anos da Independência em 200 obras nacionais. Os dois projetos foram liderados pela sempre competente jornalista Carolina Maria Ruy, do Centro de Memória Sindical.
No meio acadêmico, o destaque é para o lançamento de O Sequestro da Independência – Uma História da Construção do Mito do Sete de Setembro, escrito a seis mãos por Lilia Schwarcz e Lúcia Stumpf, professoras da USP, e Carlos Lima Junior, pesquisador da Unicamp. Por meio de quadros e ilustrações que giram em torno, especialmente, do “grito do Ipiranga”, os três autores denunciam a visão eurocêntrica por trás da narrativa tradicional.
A epígrafe do livro remete a uma citação do escritor Machado de Assis. “Esta outra independência (a cultural) não tem sete de setembro, nem campo do Ipiranga; não se fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma geração, nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo”.
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Grosso modo, 200 anos correspondem a oito gerações, cada qual de 25 anos, embora esse papo de gerações baby boomer, X, Y (ou millennials), Z e Alfa traga mais trevas do que luzes. As gerações que se sucederam ao 7 de Setembro de 1822 continuam, indistintamente, a repetir clichês, em especial a suposta monumentalidade do “Independência ou Morte”.
Nosso Hino Nacional, a propósito, começa com uma evocação do gesto de Dom Pedro 1º, porta-voz de um suposto vaticínio de “Independência ou Morte” que teria sido o marco da data: “Ouviram do Ipiranga, às margens plácidas / De um povo heroico, o brado retumbante”. Mas o Hino, além de exaltar as belezas naturais, também reverencia o brasileiro, o herói coletivo, “um filho teu” que “não foge à luta”, a ponto de, em defesa da pátria, não temer “a própria morte”.
Essa amplitude, porém, não faz parte das celebrações oficiais do Bicentenário da Independência. Na manhã desta segunda-feira (22), chega a Brasília, vindo de Portugal, o coração de Dom Pedro 1º, que liderou o País por nove anos após a Independência, mantendo o regime monárquico e a escravidão. Este será, ao que tudo indica, o ponto alto de uma comemoração das mais rebaixadas do Bicentenário. Expor um órgão morto de um mito vivo no Palácio do Itamaraty é o melhor que Bolsonaro tem a nos oferecer.
Sem se importar com o ridículo, o ministro Alan Coelho de Séllos, chefe do cerimonial do Itamaraty, confirmou à TV Globo que “o coração será recebido no Brasil como chefe de Estado”, com direito a revista à tropa e subida na rampa do Palácio do Planalto. Segundo ele, o governo vai se comportar “como se Dom Pedro 1º fosse vivo entre nós”. O que isso significa? Que o coração do imperador, morto há 188 anos, “será objeto de todas as medidas que se costumam atribuir a uma visita oficial, uma visita de Estado, de um soberano estrangeiro, no caso de um soberano brasileiro ao Brasil”. Reparem quão difícil é justificar, racionalmente, algo tão surreal.
Mas não se trata de uma ideia original. Ao investir na mitologia do 7 de Setembro, Bolsonaro repete o que o regime militar fez em 1972, quando a emancipação brasileira de Portugal completou 150 anos. O general-presidente Emílio Garrastazu Médici, o ditador de plantão, apostou na redenção de Dom Pedro durante a celebração do Sesquicentenário da Independência. Era como se a glória do imperador fosse uma espécie de aval ao regime de governo do ditador.
A iniciativa mais tacanha da ditadura foi cunhar, lado a lado, as efígies de Médici e Dom Pedro nas moedas de 1, 20 e 300 cruzeiros. Foi a última vez que um presidente estampou o próprio rosto em moedas nacionais, num culto à personalidade. A prática da auto-homenagem, absurda em qualquer regime democrático, já estava em desuso até em regimes autoritários.
O governo Médici ainda ajudou a financiar Independência ou Morte, o filme brasileiro mais visto em 1972. Estrelado pelo casal Tarcísio Meira e Glória Menezes, nos papéis de Dom Pedro 1º e da Marquesa de Santos, o longa-metragem levou quase 3 milhões de brasileiros aos cinemas, para assistir a uma versão romantizada – e fraudulenta – da Independência do Brasil.
Não foi só. Num exercício de necrofilia oficial, o regime militar trouxe a ossada de Dom Pedro em definitivo ao Brasil – e a cerimônia também o tratou com honras de chefe de Estado. O acordo com Portugal era reenterrar o corpo do imperador no Monumento à Independência do Brasil, em São Paulo. No entanto, Médici autorizou uma peregrinação macabra dos “ossos imperiais” por diversas capitais. Ao que parece, é o que Bolsonaro intenta fazer, 50 anos depois, com o coração de Dom Pedro.
Sim, é preciso celebrar o Bicentenário da Independência do Brasil, mas de forma crítica e contemporânea, a despeito do que nos entrega a chamada “história oficial”. Iniciativas do movimento sindical e do meio acadêmico nos empurram nessa direção. Já a reverência necrófila ao coração de Dom Pedro visa somente à autopromoção de um governo que está prestes a acabar.
O golpe de Estado que Bolsonaro previa acelerar no próximo feriado de 7 de Setembro parece esvaziado – as próprias Forças Armadas recomendaram cautela ao presidente. Mas o golpe publicitário da data, centrado no coração defunto do primeiro imperador do Brasil, está em pleno curso.