Cientistas criticam destinação de metade de recursos do FNDCT a empresas
Apesar das universidades serem responsáveis pela maior parte da pesquisa científica nacional, mais da metade dos recursos é destinada a empresas. Sobra orçamentária de R$ 1,5 bi prevista também é questionada por não se saber qual será seu uso.
Publicado 10/05/2022 19:56 | Editado 11/05/2022 09:39
Um ano após a aprovação da Lei Complementar 177/21, que impede o governo federal de contingenciar os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), os esforços da comunidade científica começam dar resultados. O valor bem acima dos últimos anos, no entanto sofre críticas pela partilha de metade com empresas, em vez de laboratórios públicos, além de apenas R$ 1,85 bi estarem destinados a editais e projetos com recursos não reembolsáveis.
Lideranças científicas ligadas à Academia Brasileira de Ciências (ABC) e à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) comemoram o aumento de investimentos, apesar do veto do presidente Jair Bolsonaro, que precisou ser derrubado pelo Congresso Nacional, e da resistência do Ministro da Economia, Paulo Guedes. Bolsonaro chegou a vetar a norma que proibia o contingenciamento do fundo, o principal mecanismo usado por ele para impedir que os recursos fossem aplicados.
Agora, no fim de março, o Conselho Diretor do FNDCT aprovou o seu Plano Anual de Investimentos (PAI), que deverá orientar a destinação de R$ 9 bilhões para ciência, tecnologia e inovação no País até o fim de 2022. Segundo levantamento de reportagem do Jornal da USP, a maior parte do dinheiro foi reservada para empresas, na forma de empréstimos ou subvenção econômica, e apenas uma parte menor deverá fluir para os laboratórios de universidades e institutos de pesquisa, que são os principais responsáveis pela produção científica nacional e os mais carentes de recursos no momento. Quinze universidades são responsáveis por 60% da pesquisa científica brasileira.
O valor dos investimentos chega a R$ 1,85 bilhão, segundo números apresentados pelo secretário de pesquisa e formação científica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Marcelo Morales, em um seminário sobre os 70 anos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 27 de abril.
O orçamento do CNPq foi drasticamente reduzido nos últimos anos, ao mesmo tempo em que o FNDCT passou a ter seus recursos sucessivamente contingenciados pelo governo federal. Em 2021, por exemplo, esse contingenciamento chegou a 90%. A fonte de fomento secou, e vários dos editais que tradicionalmente irrigavam a base do sistema nacional de ciência e tecnologia tiveram que ser adiados, suspensos ou reduzidos.
Com a nova lei, o CNPq espera injetar R$ 1,3 bilhão do FNDCT na ciência brasileira no biênio 2022-2023 (R$ 641 milhões neste ano, mais R$ 652 milhões no próximo). A lista completa inclui 126 iniciativas, das quais 43 serão executadas pelo CNPq.
Ainda falta saber se tudo vai correr, de fato, dentro do previsto a depender das expectativas de ano eleitoral. O dinheiro não fica automaticamente disponível, pois ainda é preciso cumprir uma série de trâmites burocráticos (e políticos), que podem atrasar a liberação dos recursos. O plano do ano passado, por exemplo, previa R$ 576 milhões para o financiamento de projetos institucionais do CNPq, mas apenas R$ 100 milhões foram liberados — de última hora, em 29 de dezembro — para salvar a Chamada Universal 2021, após um longo imbróglio entre o MCTI e o Ministério da Economia.
Além dessas novas iniciativas previstas, o CNPq está aproveitando o novo dinheiro para sanar pendências e reforçar programas já existentes. Outra chamada, lançada nesta semana, vai investir R$ 150 milhões em um novo programa de bolsas para fixação de jovens doutores no Brasil, sendo R$ 100 milhões do FNDCT e R$ 50 milhões das FAPs.
A fatia do empresariado
Há muitas críticas à maneira como os recursos estão sendo divididos, a maior parte para meia dúzia de empresas que não produzem parcela mínima da pesquisa feita nas universidades públicas. Essas empresas não precisam dos recursos destinados, nem vão usá-los, pois acessam múltiplas outras opções mais atraentes. E o Ministério sabe disso, o que torna o mecanismo uma forma indireta de contingenciamento dos recursos, que voltam para os cofres do Tesouro.
Apesar de insistir numa divisão ao meio dos recursos, a pesquisa pública demanda muito mais recursos (não reembolsáveis) que a pesquisa privada (recursos reembolsáveis). A proposta da comunidade científica era que a divisão fosse de 15% para empréstimos e o restante para fomento.
Outra crítica da comunidade científica diz respeito a utilizar recursos do Fundo, em vez de recursos do Ministério como era, para atender às Organizações Sociais (OSs) do MCTI, que vão receber R$ 1,04 bilhão do FNDCT. Desse total, R$ 640 milhões serão destinados ao pagamento de contratos de gestão e o resto será dividido igualmente em R$ 200 milhões para a implementação do laboratório Sirius e R$ 200 milhões para a construção do Laboratório Nacional de Máxima Contenção Biológica (LNMCB), ambos no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas, que é a maior das seis organizações sociais vinculadas à pasta.
Outra fatia de R$ 1 bilhão foi reservada para equalização de taxas de juros e subvenção econômica para inovação tecnológica em empresas — isso, além dos R$ 4,5 bilhões já reservados integralmente ao setor privado na forma de Recursos Reembolsáveis.
“É uma vergonha”, diz a presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Helena Nader, que integra o Conselho Diretor do FNDCT e votou contra a aprovação do plano. “O que vai para a ciência, mesmo, é muito pouco.” Segundo ela, não é razoável que meia dúzia de organizações sociais e o setor privado recebam mais investimentos do que todas as universidades públicas do País, que são as responsáveis por produzir a maior parte da ciência nacional e foram relegadas a uma situação de penúria nos últimos anos.
“Administra-se migalhas, reservando uma quantidade enorme de recursos para um setor que sabidamente não precisa nem vai usar esse dinheiro”, diz o professor do Instituto de Física da USP, vice-presidente da SBPC e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp), Paulo Artaxo. Os Recursos Reembolsáveis do FNDCT raramente são utilizados, segundo ele, porque as condições de empréstimo são pouco atrativas para a indústria. “A indústria tem acesso a muitas fontes de financiamento, o que não acontece nas universidade e nos institutos de pesquisa, que são quem mais precisa de recursos nesse momento.”
“O ponto central é que o sistema continua em risco e subfinanciado”, avalia o economista Carlos Gadelha, pesquisador da Fiocruz e representante da SBPC no conselho do FNDCT. “A covid parece não ter deixado lição da importância da ciência e das instituições científicas.”
“Saldo orçamentário”
Para além de toda essas “vontade política” de investir em pesquisa privada, o conselho aprovou uma “sobra” de R$ 1,5 bi como “saldo orçamentário”, que não se sabe exatamente para onde vai. No caso dos Recursos Não Reembolsáveis, o conselho foi além dos R$ 4,5 bilhões previstos na LOA e aprovou um plano de investimentos de R$ 6 bilhões, incluindo recursos para projetos já em andamento e novas iniciativas.
A diferença de R$ 1,5 bilhão a mais aparece nas planilhas como “saldo orçamentário”, mas não fica claro o que isso significa, segundo a reportagem do Jornal da USP. A notícia publicada pelo MCTI sobre o tema no dia 30 de março diz que o conselho aprovou um plano de investimentos com um valor superior ao previsto na LOA “na expectativa de que ocorra uma suplementação orçamentária no decorrer do ano”.
O texto do próprio PAI, no entanto, diz algo diferente: “A motivação para uma previsão de demanda superior à disponibilidade decorre da possibilidade de haver alguma frustração na execução de algumas ações de fomento a serem executadas”, diz o documento. “Sendo assim, havendo um plano de investimento aprovado, as possíveis frustrações não trarão impactos significativos na execução orçamentária, haja vista a possibilidade do emprego dos recursos em outras ações aprovadas e que atendam às condições de execução.”
Nesse caso, esse saldo de R$ 1,5 bilhão não representaria recursos adicionais, mas uma carteira de projetos “reservas”, pré-aprovados para receberem recursos no lugar de alguns “titulares” que, eventualmente, não estejam aptos a participar do “jogo”.
Fontes próximas à Finep, por sua vez, dizem que a expectativa era de que esse R$ 1,5 bilhão fosse remanejado do bolo de Recursos Reembolsáveis para o de Não Reembolsáveis. Nesse caso, seria necessário que o Ministério da Economia fizesse uma solicitação ao Congresso para alterar a LOA — algo possível de ser feito, mas pouco provável de acontecer, segundo pesquisadores, dada a resistência que o Ministério da Economia sempre demonstrou ao descontingenciamento do FNDCT.
Os Recursos Não Reembolsáveis contam para o “teto de gastos” do governo, enquanto que os Reembolsáveis, não. Além disso, o dinheiro para empréstimos que não for utilizado volta para o Tesouro no fim do ano, podendo ser computado como superávit fiscal. Daí a insistência do governo em alocar 50% (o máximo permitido pela nova lei) dos recursos do FNDCT como Reembolsáveis, mesmo sabendo que esses empréstimos dificilmente serão utilizados — seria “uma forma indireta de contingenciamento”, segundo Gadelha.
Algo que fica claro no próprio resumo executivo Plano Anual de Investimentos: a demanda por Recursos Reembolsáveis do FNDCT prevista para este ano é de R$ 2,1 bilhões; menos da metade dos R$ 4,5 bilhões disponíveis.
“A Finep acaba ficando com bilhões não utilizados, que no fim do ano o Ministério da Economia vai lá e passa a régua”, diz o físico Ildeu Moreira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da SBPC, que liderou os esforços da entidade pela aprovação da nova lei do FNDCT no Congresso.
Apesar dessa distorção entre fomento e empréstimos — que pesquisadores esperam corrigir no orçamento de 2023 — Moreira acredita que a aprovação da lei foi um “ganho muito significativo” para a ciência brasileira. “Esse respiro que estamos vivendo foi fruto dessa luta”, diz. “Conseguimos inverter a direção da curva, mas a situação ainda é muito difícil. A comunidade científica precisa se manter mobilizada para dar continuidade a isso.”
Perda de autonomia do CNPq
Apesar desse aumento na liberação de recursos do FNDCT, uma preocupação permanece inalterada: a quase extinção do orçamento de fomento do próprio CNPq, que neste ano é de apenas R$ 35 milhões — comparado a R$ 120 milhões em 2017, e valores ainda maiores no passado (corrigidos pela inflação). A consequência disso, segundo especialistas, é a perda de protagonismo e de autonomia da agência, que sempre exerceu um papel de liderança na condução das políticas de ciência e tecnologia no País.
No âmbito do FNDCT as decisões são tomadas pelo colegiado do Conselho Diretor, dentro do qual o CNPq é apenas um entre 12 instituições partícipes. (O Ministério da Economia e a Confederação Nacional da Indústria têm a maior representatividade no conselho, com três cadeiras cada uma. O CNPq tem apenas um voto.) Enquanto que no CNPq, as decisões são tomadas por um Conselho Deliberativo, composto majoritariamente por cientistas e acadêmicos.
Defende-se que O CNPq tenha um orçamento próprio para formulação e elaboração e condução das próprias políticas nacionais de ciência e tecnologia, em vez de se limitar a “executar o fomento dos outros”. Sem um orçamento próprio de fomento, o papel da agência se resume a pagar bolsas e operacionalizar recursos de outros órgãos.
Com informações do Jornal da USP