Venda dos Clubes: A empatia entre servo e escravo e o critério da galinha

Pela lei da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), o controlador pode tudo: mudar o nome do clube, mudar as cores, mudar o símbolo, trocar o time de estado.

Na segunda-feira (17), fiz uma coisa que há tempos não fazia e que não é recomendável para a saúde intelectual de qualquer adulto: li o jornal O Globo. Sim, meus senhores, na verdade fui mais além: no caderno de esportes li a coluna de Rodrigo Capelo, intitulada: “A libertação alvinegra”. Só agora tive tempo de comentar o texto.

Na coluna, o jornalista, como parte da campanha que O Globo promove em defesa da privatização de (alguns) clubes brasileiros – o meu time, o Vasco, entre eles – exalta a venda do futebol do Botafogo para um empresário dos EUA.  Mas Capelo tenta posar de “isentão”, e adverte que “o problema não é o modelo associativo, propriamente dito” e divide os analistas da alternativa de venda dos clubes em dois campos: “a corrente capitalista e pretensamente liberal” e a “corrente romântica e socialista, na falta de uma palavra melhor”.

Desta maneira, Capelo tenta passar a imagem de um espírito superior, que do alto de sua posição analisa de forma independente as divergências.  Este é um truque velho, usado por quem considera o leitor manipulável ou que não tem honestidade e coragem para defender o que pensa de forma direta.

Porém, basta raciocinar um pouco sobre o texto para saber o que Rodrigo Capelo defende. Leiam este trecho em que RC refere-se aos sócios do Botafogo que estavam reunidos decidindo aprovar ou não a SAF: “aguardo, com satisfação, a Assembleia Geral em que esses conselheiros decidirão, aos gritos, questões como o cloro para a piscina, regras de convívio para jogar bocha e custos das mensalidades, tudo, menos o futebol profissional”.

Pronto, este trecho revela tudo. Capelo não é nem capitalista nem socialista, é cínico. Não é ofensa. Cínico no sentido filosófico. Talvez, se não fosse tão cínico (filosoficamente falando), Capelo escreveria o que pensa: “onde já se viu, simples sócios, que são na verdade meros torcedores, alguns deles sem berço, talvez até morando na Penha, decidir sobre uma coisa importante como futebol profissional, quando todos sabem que futebol profissional é coisa de empresário e, se for dos EUA, melhor ainda!”. Coitado do Carlito Rocha e de tantos botafoguenses históricos que construíram, com o amor puro dos torcedores, a grandeza do Botafogo. Não deveriam ter feito isso. Não era o lugar deles, segundo Capelo.

Pela lei da SAF, o controlador (quem tem mais de 50% das ações e no Botafogo o cidadão americano que comprou tem 90%) pode tudo: mudar o nome do clube, mudar as cores, mudar o símbolo, trocar o time de estado. Não existe, na lei, qualquer previsão sobre consulta ao torcedor, ao sócio ou a quem quer que seja. O dono decide. Porém, segundo o colunista de O Globo, a estrutura associativa não significou em nenhum momento, democracia. E o CNPJ de empresa não impede que haja alinhamento e diálogo entre dono e torcida”. O argumento é tão ruim e sem sentido que me veio à mente uma situação caricata.

Vamos imaginar a seguinte cena:

Você está na rua e encontra um amigo que não vê há tempos. Segue-se o diálogo:

Você – E aí, como vai?

Amigo – Estou ótimo! Você sabe, eu estava desempregado, mas agora eu tenho casa, comida e roupa garantidos pro resto da vida.

Você – Ganhou na loteria!?

Amigo – Não, eu me vendi e vendi minha família também.

Você – Vendeu!! Como assim?!

Amigo – Não está sabendo? É a última moda no mundo dos investimentos. Chama-se “ativos da liberdade radical”. Parte do princípio de que se você é realmente livre, é livre para tudo, até para se vender. Daí, você se vende, vende seus familiares e com o dinheiro ganho pela venda paga todas as dívidas, só que agora somos considerados ativos e temos um empresário que detêm direito sobre nós e então nós, ai!, peraí…

Você – O que houve? Que colar é esse em seu pescoço piscando?

Amigo – Nós agora temos que usar este colar. Quando a gente demora a fazer alguma coisa que o dono mandou, ele aciona o colar que dá um leve choque. Não machuca, mas incomoda um pouco. Bom, tenho que ir senão levo outro choque. O meu dono ainda não conhece a Teresa e vou leva-la para apresentar a ele.

Você – Teresa, sua filha? Que fez 15 anos recentemente? Você também a vendeu?

Amigo – Claro, já pensou se o dono a escolhe como concubina? Vamos nos dar bem.

Você – Mas isto é loucura! É uma infâmia! Isto é escravidão!

Amigo – Lá vem você com sua mania de romântico e socialista. A minha família era uma bagunça, a gente vivia brigando por qualquer coisa e.. aí! Agora o choque foi mais forte. Tenho que ir, tchau!

Claro que isso é uma caricatura, mas ora, se a democracia coletiva de um clube apresenta falhas, um ditador é a solução? Pois não se enganem, e sabem disso todos os que trabalham em empresa privada. Empresa tem DONO. O DONO manda e acabou, como mostra a declaração da filha do dono do Valencia, abaixo, respondendo a torcedores que reclamavam do desempenho do time.

Lembram do caso do Figueirense? Desde 2017 uma empresa privada administrava o futebol do clube. Em 2019, em meio a salários atrasados e greve de jogadores, a empresa simplesmente notificou a CBF que estava desistindo de disputar a série B. Precisou o Conselho Deliberativo amador do Figueirense rescindir o contrato com a empresa e intervir para que o Figueirense continuasse na competição. Se o Figueirense fosse SAF, no modelo em que Cruzeiro e Botafogo adotaram, com 90% de controle de empresários, adeus.

Quem estuda o caso dos chamados clubes empresas com rigor, sabe que a MAIORIA dos clubes que se transforma em empresa depois faz o caminho inverso, para simplesmente não acabar. Recomendo o livro “O Mito do Clube-Empresa”, do advogado mineiro Luciano Motta. Motta não parte de uma posição de princípio contra o Clube Empresa, pelo contrário, mas ao fazer pesquisa de campo na Europa, onde foi estudar, viu que a coisa é muito mais complexa do que se imagina.

Eu também não sou contra soluções que tragam investimentos novos aos tradicionais clubes brasileiros, e principalmente ao meu Vasco, que é o que importa para mim, desde que o Clube mantenha o controle da SAF, o que a lei permite, inclusive.

No entanto, o que aconteceu com o Cruzeiro e com o Botafogo é um escárnio com a história, a paixão e o futuro destes clubes.

O autor da coluna que estamos comentando, Capelo é, pretensamente, especialista na saúde financeira dos times de futebol. Não faz muito tempo, colocou o Cruzeiro como a quinta equipe mais bem administrada do país. Pouco depois o Cruzeiro faliu.

Na desastrosa gestão do presidente vascaíno Alexandre Campello, RC escreveu uma coluna furibunda quando o Conselho Fiscal do Clube, auxiliado inclusive por um ex-presidente do Conselho Estadual de Contabilidade do Rio de Janeiro, rejeitou o balanço apresentado. O jornalista, que não ouviu qualquer membro do Conselho Fiscal, ficou indignado, acusando o CF vascaíno de “fazer política”. A vida mostrou o que era aquele balanço, que apresentava o Vasco com um superávit maior do que o do Palmeiras e de um certo clube carioca sem estádio…

Depois de ler esta última coluna do RC, decidi que vou passar muito mais tempo sem ler O Globo. Impressionante como só consegue piorar. E não se trata aqui de argumentar em termos de direita ou esquerda: trata-se apenas de mau ou bom jornalismo.

A impressão é a de que, na maior parte dos casos, o jornal O Globo contrata seus quadros no jornalismo com o mesmo critério de uma galinha bicando a terra: escolhe a bosta. E engraçado que nem sempre foi assim. Nunca gostei de O Globo, entre outras coisas, porque sempre foi um veículo anti-vascaíno, mas reconhecia que o jornal buscava ao menos preservar a qualidade, com um time muito bom de redatores, repórteres, editores, inclusive no jornalismo esportivo. “Este é um bom de um filha de puta, mas é bom profissional”, era comum ouvirmos entre jornalistas sobre um colega de O Globo. Depois, especificamente na editoria de esportes, veio uma turma cuja estrela fulgurante era Renato Maurício Prado e daí foi só ladeira abaixo até chegar em Rodrigo Capelo. Que aliás é vascaíno e, embora não confesse, apoiador desta caterva que hoje, com auxílio luxuoso da justiça carioca, ganhou o comando do clube depois de ter perdido a eleição no voto.

Talvez a explicação esteja aí. Com a desejada (por eles) venda do Vasco, não é preciso eleição, não é preciso conselho fiscal, não é preciso democracia. Quem sabe um agiota sortudo não compre o gigante na xepa?

Alguns maus vascaínos defendem esta saída. O argumento releva a pobreza de espírito deste tipo de torcedor que, se torcesse para outro clube, não faria falta nenhuma: “Desde que Fulano ou Beltrano, de quem não gosto, sumam do clube, que se venda o Vasco!”

Cabe aos verdadeiros vascaínos a união em torno da Assembleia Geral Extraordinária, que aliás está indo de vento em popa, para expulsar os vendilhões do templo sagrado de São Januário.

É necessário também alertar o maior número possível de sócios e torcedores para a necessidade de uma leitura crítica da chamada mídia hegemônica, pois ela não é isenta nesta discussão e continuará sua campanha a favor da venda do Vasco, contando com profissionais escolhidos pelo critério da galinha, que não é o melhor critério mas tem sua eficácia, pois como prova a existência de certos tipos de vascaínos, tem gente que adora engolir bosta.

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