O que esperar do julgamento dos acusados pela tragédia da Boate Kiss
Quase nove anos depois ocorre julgamento dos acusados de provocarem a tragédia que matou mais de 200 jovens e comoveu o país
Publicado 01/12/2021 11:48
Um calhamaço com mais de 20 mil páginas adormece nos arquivos do Poder Judiciário, em Porto Alegre. É o que restou da tragédia provocada pelo incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul. O que era para ser uma madrugada de festa entre universitários terminou em 242 vidas ceifadas e 680 feridos que carregam as marcas e dores daquele 27 de janeiro de 2013.
Às vésperas de completar nove anos, a ferida volta a sangrar. A partir deste 1º de dezembro, quatro réus – dois sócios da casa e dois integrantes da banda que animava a festa – serão levados a julgamento popular na capital gaúcha. Prevê-se que o debate no tribunal pode durar até 15 dias.
Até os mais experientes se comovem. “De todas as dificuldades no processo, a maior foi ter que lidar com a dor dos familiares. Muitas vezes, por questões legais ou técnicas, não pude dar as respostas que eles tanto esperavam. Foi muito difícil” diz o advogado criminalista Pedro Barcellos, defensor das vítimas. São muitas as histórias narradas. Como a do militar bombeiro que enquanto carregava no colo o corpo de uma jovem morta, ouviu o celular tocar no bolso da roupa dela. Era a mãe em busca de notícias. Percebeu que ela já havia ligado dezenas de vezes. Não teve coragem de atender.
Na noite da tragédia, a enfermeira Carina Corrêa estava de plantão no hospital onde trabalhava .A filha havia ido à boate Kiss. Conversou com a filha pelo telefone por volta de 1h30 da madrugada. Ela contou iria embora logo, pois estava muito cansada. “Mãe, te amo, fique tranquila” foram suas últimas palavras.
Ela ainda lembra que estranhou quando um intenso alarido de sirenes das ambulâncias começou a ecoar pela cidade e, de repente, a chegada de dezenas de corpos queimados, mutilados. Foi aí que soube da tragédia. Entre as obrigações do trabalho e o desespero da mãe, tentou ligar varias vezes, mas ninguém atendia.
”Fiquei desesperada. Via aquelas crianças chegando em roupas de festa e cobertas por fuligem. Olhei leito por leito nas enfermarias. E nada da minha filha. Os colegas prometiam que iriam encontra-la, mas reparei o olhar deles e comecei a suspeitar do pior” recorda a mãe, em depoimento ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Na manhã do domingo veio à confirmação de sua morte. Ao contrário do que prometera, Thanise, 18 anos, estudante de Filosofia, nunca mais voltou para casa.
Paulo Tadeu Nunes de Carvalho perdeu o filho, o são-paulino Rafael. As tardes de domingo e os gols no Morumbi ficaram na saudade. Mesmo assim, insiste em afirmar que ninguém quer vingança. “Nada trará nossos filhos à vida. Queremos apenas que a Justiça prevaleça” diz o matemático paulista. Walter de Mello Cabistani, o Waltinho, 20 anos, estudante de direito, morreu sem nenhuma queimadura ou marcas no corpo.
“No velório, soube que ele conseguiu sair, mas voltou para ajudar salvar os amigos” revela a mãe, Denise Cabistani. Em um desabafo às vésperas do julgamento ela escreveu: “Estava contigo quando abriste teus olhos pela primeira vez, mas não pude estar ao seu lado quando fechaste pela última. Isso dói muito e nunca vai sarar”. As cicatrizes serão eternas. Mas, quem sabe, a Justiça faça com que as feridas ainda abertas parem de sangrar.
As versões que se enfrentarão nos tribunais
No banco dos réus estarão os empresários Elissandro Spohr, o “Kiko”, e Mauro Hoffmann, sócios da boate. Ambos apontados como responsáveis pelas inúmeras irregularidades apontadas nos laudos. E também os músicos Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha, da banda Gurizada Fandangueira. A estratégia dos advogados de defesa é desqualificar a tese do dolo eventual, quando alguém age com a consciência que, mesmo de forma involuntária, seu ato pode produzir um risco danoso. Vão insistir que a responsabilidade pela tragédia é das autoridades e órgãos públicos, como a prefeitura de Santa Maria, o Corpo de Bombeiros e o Ministério Público por terem permitido o funcionamento da boate.
Jader Marques, advogado de Spohr, pede que se faça uma reflexão sobre a diferença entre “senso de justiça e sensação de vingança”. E questiona sobre os reflexos daquela madrugada de 27 de janeiro sobre a sociedade. “O brasileiro se sente mais seguro depois da Kiss? Existem mudanças no País em relação às políticas contra incêndio? A resposta é não.”
Ainda segundo Marques, seu cliente tinha todos os alvarás do Corpo de Bombeiros, prefeitura e Ministério Público. “Todas essas instituições entraram na Kiss antes do incêndio, avaliaram e afirmaram que poderia funcionar. E nesses quase 9 anos, meu cliente sempre esteve ao dispor da Justiça e da imprensa, porque não tem nada para esconder”. O inquérito policial chegou a apontar, além dos quatro réus que irão a júri, 24 agentes públicos, que ficaram de fora do processo final.
Já Pedro Barcellos, advogado das famílias vítimas e assistente do MP, defende a tese do dolo eventual. Ainda que os agentes públicos tivessem falhado na fiscalização, rebate, o processo seria da esfera de responsabilidade administrativa. “Quem provocou o incêndio na boate foram os dois integrantes da banda. Certamente eles não tinham a intenção de matar nem de pôr fogo na casa, mas a ação provocou a morte de centenas de pessoas” diz . Em nenhum momento, insiste ele, a denúncia defendeu qualquer narrativa que os réus pretendiam matar. “O que houve foi uma ação de dolo eventual. E o que é o dolo? É a vontade livre e consciente em busca de um resultado”.
O Ministério Público corrobora esta tese. Para o subprocurador-geral de Justiça para Assuntos Institucionais, Julio Cesar de Melo, as colocações dos advogados de defesa são “narrativas descoladas da verdade”. A acusação vai pedir, além da condenação, a prisão dos quatro réus. “Aqueles que não encontram justificativas para suas reprováveis condutas tentam passar suas responsabilidades para outrem”.
A dor, o desespero, a ansiedade, são as duas faces de uma mesma tragédia. De todos os acusados, o produtor da banda Luciano Bonilha, foi o único que queria ser julgado em Santa Maria. A defesa dos demais solicitou o desaforamento para Porto Alegre. Ele é acusado de ter comprado o artefato que ocasionou o incêndio. Segundo o vendedor que o atendeu, Leão optou pela compra do produto mais barato, que solta fagulhas, e não pelo chamado “fogo frio”, menos perigoso, por ser mais caro. Foi ele, inclusive, quem acendeu o artefato em uma espécie de luva na mão do vocalista da banda, Marcelo dos Santos.
Detido no domingo, dia do incêndio, Bonilha recebeu tratamento médico e aconselhamento psicológico quando saiu da prisão, três meses depois. Desde então, o músico tenta reconstruir sua vida. “Tenho pânico de escuro, não consigo ficar com a luz apagada”, disse ele a CartaCapital. “Tomo tranquilizante para dormir”. Leão conta também que já foi procurado por um pai que perdeu dois filhos na boate. “Ele disse que não iria me condenar, afinal, eu estava no mesmo local. Choramos bastante. Não é fácil”.
Leão torce para que chegue logo o desfecho do julgamento. “Anseio pelo julgamento desde que fui indiciado como responsável por essa tragédia. Preciso dar um norte na minha vida. Sou mais uma vítima daquele incêndio, assim como os jovens que estavam lá” afirma. “Só quem é culpado injustamente e sofre como sofro entende o que passo.”
Fonte: CartaCapital