Como o discurso do medo impulsionou a extrema-direita no Chile
Nenhum dos dois candidatos que foram ao segundo turno formou grandes maiorias, mas a polarização do resultado põe em evidência o terremoto político que o Chile vive
Publicado 24/11/2021 12:32 | Editado 24/11/2021 13:52
O ultradireitista José Antonio Kast foi ao segundo turno das eleições presidenciais no Chile na condição de candidato mais votado no domingo passado, com 28%. Seu adversário de esquerda, Gabriel Boric, ex-líder estudantil de 35 anos, recebeu 25,5% dos votos, liderando a chamada Frente Ampla em aliança com o Partido Comunista. Nenhum dos dois formou grandes maiorias, mas a polarização do resultado põe em evidência o terremoto político que o Chile vive.
Kast conseguiu espalhar o medo do caos entre os eleitores – e transformou Boric em uma ameaça. “A eleição foi uma contrarreação à explosão de outubro de 2019”, resume a cientista política e analista chilena María Ángeles Fernández, doutora em Ciência Política e analista chilena. “Instalou-se na sociedade uma violência desconhecida na democracia, difícil de categorizar. O que falhou foi a efetividade do Estado para controlá-la”, afirma.
A rejeição à violência atravessou todas as camadas sociais e foi um entrave às chances eleitorais de Boric, que assumiu como suas algumas bandeiras das ruas, como redução das desigualdades e saúde e educação públicas e gratuitas. O discurso de Kast, injetando medo na disputa, vingou em alguma medida e impulsionou a extrema-direita.
Gonzalo Müller, diretor do Centro de Políticas Públicas da Universidade do Desenvolvimento, chama de “outubrismo” o movimento iniciado com os protestos de outubro de 2019. “O outubrismo mudou a política chilena, mas já não cresce. E isso explica a reação de um mundo que se refugia em Kast, o mais inflamado crítico da eclosão.”
Boric foi um dos líderes estudantis que em 2011 saltou das ruas para o Congresso. Se vencer nas urnas em 19 de dezembro, será o presidente mais jovem da história do Chile. Kast, por sua vez, integrou a UDI, partido de direita mais próximo a Pinochet – até que rompeu com ela para formar sua própria formação, fora das estruturas.
Conforme o professor Robert Funk, da Universidade do Chile, “é a primeira vez em 30 anos que os dois candidatos que vão ao segundo turno não pertencem aos partidos chilenos tradicionais. É o colapso do sistema e é inédito que não haja um partido de centro no segundo turno”.
O golpe eleitoral mais duro coube à Democracia Cristã e ao Partido Socialista, as duas principais agremiações da antiga Concertação. Mas também sobrou para a direita tradicional, representada nestas eleições por Sebastián Sichel, um ex-democrata-cristão que se apresentou como candidato do atual presidente, Sebastián Piñera. Sem as forças tradicionais, não custou muito a Kast fazer campanha com a lógica do “eu ou o caos”.
“Gabriel Boric e o Partido Comunista querem indultar os vândalos que destroem. É preciso dizer: são Boric e o Partido Comunista que se reúnem com terroristas assassinos”, apelou Kast na noite eleitoral. Com esse tipo de discurso, ele conseguiu que sua votação não se limitasse aos mais ricos, alcançando também uma classe média que deseja restaurar a ordem perdida e foge da incerteza trazida pela mudança.
Do outro lado estão os que perderam a fé no “milagre chileno”, apoiado em um Estado mínimo que pouco participa do financiamento da educação e da saúde. A educação gratuita foi o estopim dos primeiros protestos estudantis, ainda em 2006. O pavio se manteve aceso em 2011 e acabou explodindo em 2019. Boric tomou essas reivindicações como plataforma de campanha. “Devemos ser os porta-vozes da esperança, do diálogo e da unidade. A esperança vence o medo”, disse Boric após a divulgação dos resultados.
Agora, começa a etapa em que os dois candidatos devem convencer o eleitorado daqueles que ficou pelo caminho no primeiro turno. Boric já estendeu pontes à Democracia Cristã e seria lógico que some os votos de Marco Enríquez-Ominami, um progressista que obteve 7,6%. O Partido Socialista também manifestou imediatamente seu apoio. Ele também pode somar entre os 53% que ficaram em casa no domingo – uma abstenção que não é excepcional no Chile – e talvez se decidam a participar da batalha final.
Kast abriu os braços ao direitista Sebastián Sichel, que por enquanto só disse que jamais votará em Boric. “É evidente que na candidatura de esquerda não vou votar, mas tenho diferenças programáticas com José Antonio Kast, as quais estou disposto a discutir mais adiante”, disse.
Todos os olhares apontam, entretanto, para Franco Parisi, um candidato atípico, que conseguiu o terceiro lugar, com 12,8% dos votos, depois de fazer campanha sem pisar no Chile – ele vive nos Estados Unidos e não pode retornar por problemas judiciais. “O eleitor de Parisi é sobretudo antissistema”, explica Gonzalo Muller.
Com informações do El País