Por que a China não vai intervir no Afeganistão?

Para muita gente, a não-intervenção chinesa seria uma espécie de apoio implícito ou tácito ao Talibã. É uma interpretação equivocada. Primeiro, por ser falaciosa. Segundo, por ignorar a complexidade da geopolítica

Fotomontagem feita com as fotos de: Xinhua; Washington Post

Desde o último dia 15 de agosto, quando o Talibã tomou a capital do Afeganistão, Cabul, e voltou ao poder no país quase 20 anos depois, tem havido muitas críticas à China devido a uma alegada “neutralidade” diante da questão afegã. Para muita gente, até mesmo do campo progressista, a não-intervenção chinesa seria uma espécie de apoio implícito ou tácito ao Talibã. Esta crítica é fruto de uma falácia lógica: se a China não se propõe a intervir no Afeganistão, logo apoia o Talibã. É uma interpretação equivocada. Primeiro, por ser falaciosa. Segundo, por ignorar a complexidade geopolítica (sobre isso, aconselho texto do professor Elias Jabbour no Portal Vermelho do tema https://dev.vermelho.org.br/2021/08/16/elias-jabbour-china-e-russia-podem-tirar-afeganistao-do-jugo-fanatico/). Mas, principalmente, por desconsiderar algo fundamental na diplomacia da República Popular da China: os chineses não vão intervir no Afeganistão porque o país se pauta nas suas relações internacionais pelos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica.

De acordo com Zhengqing e Xiaoqin, os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica são “o mais importante cartão de visitas da China no cenário global contemporâneo, exercendo um papel importante na promoção do desenvolvimento pacífico da China e moldando sua imagem como um poder responsável”. E quais são estes “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica”?

  1. Respeito mútuo pela soberania e integridade territorial;
  2. Igualdade e benefício recíproco;
  3. Não-agressão mútua;
  4. Não intervenção nos assuntos internos;
  5. Coexistência pacífica.

É importante compreendermos os contextos histórico e geopolítico que levaram à formulação e implementação deste fundamento diplomático por parte da República Popular da China. Quando a China inicialmente propôs os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica como princípio fundamental orientador das relações interestatais, revelava, primeiro, a vontade política de salvaguardar a sua independência e segurança nacionais, mas também de conviver em pé de igualdade com outros Estados.

Além disso, a própria formulação das primeiras orientações que culminariam nos Cinco Princípios, representou um importante marco na diplomacia chinesa, iniciando a transição da “diplomacia revolucionária” para a diplomacia de Estado. Uma das razões para essa transição, segundo Zhengqing e Xiaoqin, encontra-se na própria cultura tradicional chinesa de “tratar os outros da forma como gostaria de ser tratado” e “paz e harmonia devem prevalecer”. Aliás, as concepções chinesas de harmonia e futuro partilhado encontram raízes no confucionismo.

Mao Tsé Tung proclama a fundação da República Popular da China – MaoTse Tung proclama a fundação da República Popular da China

Igualdade, benefício e respeito mútuos para a soberania e integridade territoriais, que são o conteúdo essencial dos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica se encontram na gênese da formulação dos princípios diplomáticos da República Popular da China desde o seu início.

Se recuarmos a março de 1949 (sete meses antes da proclamação da RPC), na 2ª Sessão Plenária do Comitê Central do Partido Comunista da China, encontramos Mao afirmando: “nós estamos dispostos a estabelecer relações diplomáticas sob o princípio da igualdade”. Em abril, Mao vai além: “As relações internacionais da República Popular da China devem se estabelecer na base da igualdade, benefício e respeito mútuos para a soberania e integridade territoriais. Enquanto o Programa Comum da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, estabelecido dias antes da proclamação da RPC, previa:

“O Governo Central do Povo da República Popular da China deve negociar e estabelecer relações diplomáticas na base da igualdade, benefício mútuo, respeito mútuo à soberania e integridade territoriais com qualquer governo estrangeiro que cortar suas relações com os reacionários do Kuomitang”.

Este princípio orientador se encontra consagrado, inclusive, na Constituição chinesa, que traz como objetivo o estabelecimento de “Estratégia mutualmente benéfica de abertura no desenvolvimento de relações diplomáticas e trocas econômicas e culturais.”

Entretanto, é o Tratado de Amizade, Aliança e Assistência Mútua Sino-Soviético, de fevereiro de 1950, que inaugura as relações bilaterais chinesas e traz os princípios básicos da sua diplomacia: “no espírito da igualdade, benefício mútuo, respeito mútuo para a soberania e integridade territoriais, não-intervenção nos assuntos internos de cada um”. O Tratado Sino-Soviético, ao trazer o princípio de não-interferência nos assuntos internos e não-agressão mútua, representa uma extensão aos princípios anteriormente expressados e oficializa os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica como um modelo da diplomacia chinesa.

Porém, foi o Premiê Zhou Enlai quem conectou a ideia de “Coexistência Pacífica” com a diplomacia chinesa, em 1951. Em pronunciamento na Assembleia Geral da ONU, Zhou, em apoio à recomendação de paz submetida pela União Soviética, destacou: “Nos últimos dois anos a China estabeleceu relações com vários países, de diversos sistemas sociais, com base na coexistência pacífica de igualdade, benefício recíproco e respeito mútuo pela soberania territorial”. Esta foi a primeira vez que aos Princípios foi acrescentada a ideia de coexistência pacífica.

Ex-Primeiro Ministro chinês, Zhou Enlai I Foto: Reprodução

Porém, foi em um documento de abril de 1954 que os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica vão aparecer pela primeira vez alçados à condição de princípios formalmente orientadores da diplomacia e relações externas da China: Acordo Sino-Indiano. Por intermédio de Zhou Enlai, em negociações iniciadas em 31 de dezembro de 1953 sobre a questão do Tibete, os cinco princípios foram incorporados ao preâmbulo do “Acordo (com troca de notas) sobre comércio e relações entre a Região do Tibete da China e a Índia”, assinado em 29/04/1954.

O então Primeiro-Ministro indiano afirmou que “Zhou Enlai é o pai dos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica”. Em outubro de 1954, em encontro com Nehru, Mao declara que “os Cinco Princípios deveriam ser expandidos a todas as relações entre estados”.

Esta expansão dos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica é consagrada já em 1955, influenciando diretamente nos 10 princípios da Conferencia de Bandung. Ao fim de 1971, um total de 54 nações havia estabelecido relações diplomáticas com a China tendo os “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica” como base. Em 1964, por exemplo, a França foi o primeiro país Ocidental “desenvolvido” a estabelecer estas relações, sendo seguida por Itália e Canadá.

Em 1972, ao fim da visita de Nixon à China, que estabeleceu o início das relações China-EUA, a Declaração Conjunta das duas nações afirmava explicitamente que suas relações se baseariam nos Cinco Princípios da Coexistência Pacífica. Tendo sido reafirmado em 1979, quando as relações diplomáticas foram oficialmente estabelecidas.

A partir da “reforma e abertura” (fim dos anos 1970), os “Cinco Princípios da Coexistência Pacífica” ganharam mais força na política externa, contribuindo para a construção da visão chinesa de diplomacia baseada na compreensão mútua e no estabelecimento de uma nova ordem internacional política e econômica. Deng Xiaoping afirmou que “os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica constituem a melhor maneira de se lidar com as relações inter-estatais.” Estes Princípios se encontram consagrados em Declarações diplomáticas da China com mais de 100 países.

Após o Século de Humilhação, em que a China foi subjugada à condição semicolonial e semifeudal, dividida e explorada por potências imperialistas Ocidentais (e também pelo Japão), a República Popular da China constrói o seu caminho na busca do Sonho Chinês de rejuvenescimento da nação, ao mesmo tempo em que apresenta ao mundo uma ideia de futuro partilhado e harmonia entre os povos. É precisamente desta longa experiência que os chineses retiram, também, esta postura de não-agressão e não-intervenção. Afinal, como frisou o presidente chinês Xi Jinping em seu discurso na cerimônia de comemoração do Centenário do Partido Comunista, a China não intimida, não ameaça, não subjuga, nem oprime outras nações.

Os Cinco Princípios da Coexistência Pacífica, portanto, mais do que princípios orientadores para os chineses, tornaram-se um dos maiores contributos para as relações internacionais e o direito internacional. Por isso, não espere que a China intervenha no Afeganistão. Porém, não confunda o respeito à soberania afegã como apoio ao Talibã.

Autor