A paternagem e o filme “A vida é bela”
A chegada dos Dia dos Pais traz à tona a importância da referência paterna, o que se evidencia no personagem Guido, do filme “A Vida é Bela” (O texto pode conter spoilers do filme)
Publicado 02/08/2021 19:45 | Editado 02/08/2021 20:39
O feminismo tem jogado papel central no debate sobre a paternidade, sobre o papel dos homens na sociedade, particularmente nos últimos anos do século 20 e nesse século. O filme “A vida é bela” é um excelente exemplo da cumplicidade, amor e proteção do pai sobre seu filho, que analisaremos em seguida.
O questionamento do feminismo se assenta nas profundas desigualdades e na subordinação e opressão histórica imposta pelo patriarcado, pelo capitalismo e, no Brasil, pelo racismo, formando uma tríade, assumindo dimensões de desigualdades funcionais para a lógica de produção e reprodução do capitalismo, recaindo de forma mais intensa a opressão e exploração sobre as mulheres negras. Citamos Saffioti (2004), que defende o uso do conceito de patriarcado, pois esse representa um tipo hierárquico de relação que está presente em todos os espaços sociais e que é uma relação civil e não privada. O patriarcado concede direitos sexuais aos homens sobre as mulheres, possui uma base material e corporifica-se. Além disso, diz respeito a uma estrutura de poder que tem por base a ideologia e a violência. Esta autora defende e compreende que o sistema patriarcal e sua ideologia impregnam a sociedade e o Estado. Ainda afirma que na ordem patriarcal de gênero, o poder é exercido por quem for homem, branco e heterossexual. A sociedade é perpassada não apenas por discriminações de gênero, como também de raça, etnia, classe social e orientação sexual. Para a autora há uma ordem patriarcal e de gênero, evidenciando que o direito patriarcal perpassa não só a sociedade civil, como também no Estado.
Pensar no dia dos pais que se celebra no próximo domingo, com a presença paterna como algo estruturante ao desenvolvimento e formação do(a) filho(a) é necessário à sociedade que queremos construir, uma sociedade de cumplicidade, esperança e igualdade.
Não importa a configuração familiar, há que se exercer a chamada paternagem, ou seja, um papel terceiro na relação, sendo alguém que se mostra como lei, mas também como afeto, sendo uma autoridade a ser respeitada.
Nesse dia dos pais, é também momento para refletir o papel do homem no cuidado, atenção, amor e esperança para com os filhos e filhas. Lutamos por um mundo com responsabilidade e paternagem! E, ainda não podemos deixar de lembrar dos mais de 550 mil mortes ocorridas pelo negacionismo de uma figura ao avesso do que deve ser um pai. Ao contrário do Guido no filme: “A vida é bela”.
“Esta é uma história simples; no entanto, não é fácil contá-la. Como numa fábula, há dor, e, como numa fábula, ela é cheia de maravilhas e de felicidade.”
Com estas palavras de aviso começa a película italiana, dirigida por Roberto Benigni. Pode-se dizer ainda que se trata de duas fábulas, uma em cada metade do filme, que tem por pano de fundo a Itália de Mussolini, depois controlada diretamente pelo exército germânico nazista. Nas duas metades estão o amor de um homem por sua “principessa” Dora e pelo pequeno filho Giosué. Na passagem do Dia dos Pais, parece apropriado tratar dessa comédia misturada com tragédia. E porque os eventos transcorrem em cenário de fascismo, uma certa referência ao que vivemos no Brasil de 2021.
A cena de abertura é hilária e tem seu simbolismo. O personagem principal, Guido (Roberto Benigni), sempre alegre e otimista, passeia despreocupadamente como carona do amigo Ferruccio, num calhambeque que percorre uma estradinha de terra perto de Arezzo. É 1939. Os freios falham e o carro desembesta sem controle pela estrada, atravessando uma porção de arbustos e entrando na cidadezinha. Ali, uma multidão se aglomera em ambos os lados da rua, à espera da visita do rei.
Quando as pessoas veem aquele automóvel chegando, ornamentado com folhas e flores (involuntariamente arrancadas da vegetação), onde o esbaforido Guido, de pé, brada que todos se afastem para não serem atropelados, o povo, colorido de bandeirinhas, dá vivas à passagem do veículo. O gesto do braço direito erguido de Guido imita, sem perceber, a saudação fascista e a multidão acha que é o rei passando, respondendo a Guido com seus braços também levantados. Hoje, uma parte dessa multidão, um tanto imbecilizada, berraria “Viva! Mito!”.
A primeira metade do filme é comédia e romance, em que Guido se dedica a conquistar o amor de Dora (Nicoletta Braschi), e arrancá-la de um indesejado noivado com um rico burocrata da cidade. Nesta parte, mais alusões sarcásticas ao fascismo de Mussolini. Guido sabe que na escola onde Dora leciona haverá visita de um inspetor do governo, e, antes que o verdadeiro funcionário chegue, fantasia-se como inspetor e vai antes, só para falar com ela.
Atrás de si, na parte da frente da sala de aula há dois painéis, em que se lê “Fascista perfetto” e “Libro e Moschetto” (Livro e Fuzil). Após cumprimentar os surpresos diretores do liceu Francesco Petrarca, e diante de uma classe de crianças, Guido sobe na mesa, começa a discorrer ironicamente sobre a maravilha da raça superior, exaltando suas próprias orelhas, músculos, quadris, levanta a camisa e mostra o “ombelico” (umbigo) perfeito do ariano supremo.
Também de se mencionar o engraçado da cena em que Guido finalmente rapta Dora, diante de uma atônita plateia de ricos em uma festa chique, e desfila montado num cavalo que fora pintado de verde pelos fascistas e pichado (o cavalo) com a expressão “Achtung! Cavallo ebreo” (Atenção! Cavalo Judeu). Já então havia começado a perseguição aos judeus da cidade, Guido deles descendia, sendo mais tarde capturado junto com o filho.
Um campo de concentração em 1944 ou 45, então já sob controle da SS nazista, é o palco da fábula trágica final do filme. A ele, num apinhado comboio ferroviário, são levados Guido, Dora e o pequeno Giosué (Giorgio Cantarini). O que aqui enternece é que o pai tudo diz e age para fazer crer ao filho que ali estão para uma temporada de férias diferentes. Para participar de um grande jogo, em que precisam ser espertos, para obter mil pontos, ficar em primeiro lugar e ganhar o grande prêmio. Um “BBB” no campo de concentração nazista… sem festas, só misérias.
A criança custa crer que aquilo tudo é um divertido (e estranho) jogo naquela instalação cinzenta, sob frequentes ações e gritos truculentos dos soldados alemães. Mas, Guido, a todo momento, quer proteger Giosué de saber a dura realidade, e insiste em criar para o filho de cinco anos explicações e justificativas fantasiosas. Ele acaba acreditando na fantasia do pai que sempre se sacrificou para protegê-lo.
A figura do pai protetor no filme, deveria ser uma referência, diferentemente do que ocorre no Brasil onde boa parte das crianças nasce sem poder contar com a presença da figura paterna sequer no sobrenome. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, 5,5 milhões de crianças não tem o nome do pai na certidão de nascimento. As mulheres são as principais responsáveis pelos cuidados dos filhos, sendo que nas famílias de baixa renda 89% das mulheres são responsáveis primárias pelo cuidado dos filhos, enquanto entre mulheres com renda superior a cinco salários-mínimos, o índice cai para 72% e os pais, 14%. (IBDFAM)
Hoje 45% das famílias são chefiadas por mulheres (IBGE), o que facilmente pode ser questionado o modelo patriarcal de família, evidenciando que a realidade concreta mostra-se incompatível com as idealizações culturais e formações familiares brasileiras da atualidade, sinalizando na contramão do discurso de autoridade masculina e da posição do homem como proprietário da família. O filme ainda, registra uma total inversão da chamada masculinidade tóxica e o papel da figura paterna como algo que transcende o autoritarismo e ausência patriarcal.
Como acaba o filme? Não podemos liberar todo o “spoiler”, para quem nunca viu o filme ou dele não se lembra.
Esperamos que nossa sociedade possa construir uma paternagem na presença de qualidade, na divisão dos cuidados e na afetividade independente da configuração familiar.
A vida é bela. A vida poderá ser bela, na medida em que conquistarmos a democracia e e possamos realizar uma educação libertadora e respeitadora de nossas escolhas.
- Título: A Vida é Bela (La vitta è bela)
- Ano: 1997
- País: Itália
- Elenco: Roberto Benigni, Nicoletta Braschi, Giorgio Cantarini
Referências:
- SAFFIO TI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. Sao Paulo, Perseu Abramo (2004)
- https://www.psicologiasdobrasil.com.br/sobre-paternagem-papel-pai
- https://ibdfam.org.br/noticias/7024/Paternidaderesponsável